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Crianças
O Dia da Criança, por Nuno Lobo Antunes
Crianças
Redação Lux em 5 de Junho de 2010 às 09:04
Percebo mal a existência do «Dia Mundial da Criança», a não ser que se aproveitasse essa data para actividades sérias de ordem política, educacional ou científica, que verdadeiramente servissem as crianças.

Agora como uma espécie de Dia de S. Valentim em que o comércio aproveita para vender mais brinquedos, não me parece bem. Com esse propósito, já há o dia de anos, o Natal (por muito que se proteste, é um facto¿), o Dia do Jardim Zoológico, o do Oceanário, o Dia dos Dinossauros no Pavilhão Atlântico, os dias de anos dos outros meninos que são praticamente todos os fins-de-semana, e de onde se volta com saquinhos de chocolates e pior da barriga. E há também um sem-número de festas da escola, quase sempre em horários que não dão jeito nenhum. A propósito dos Dinossauros, a minha experiência foi deprimente. Antes do espectáculo, a audiência é proibida de tirar fotografias, o que bem se compreende. Eis que, apagadas as luzes, se acendem centenas de flashes de outros tantos telemóveis, numa desobediência à autoridade, descarada e incomodativa. Espero que as respectivas crianças se recusem nessa noite a ir para a cama, seguindo o exemplo dignificante dos paizinhos.

Para mim, o Dia da Criança é todos os dias, não só porque tenho filhas pequenas, mas também porque sou pediatra. Tenho por isso razões pessoais e profissionais para acreditar saber aquilo de que as crianças precisam, para que todos os dias sejam o seu dia. Acredito que uma infância feliz é um porto de abrigo para as tempestades que a vida adulta necessariamente traz.

Porque será que as melhores memórias da infância tantas vezes estão ligadas aos avós? É que eles representam o amor em estado puro.

É necessário que as crianças possam confiar nos adultos. Não vale mentir, não vale enganar.

Depois, que eles tomem o interesse delas como superior ao seu. Esta regra é quebrada após o divórcio com uma frequência assustadora. Já não se trata apenas de fazer das crianças moeda de troca, mas muitas vezes de desenvolver esforços para criar uma separação efectiva entre os filhos e o seu progenitor. O fenómeno da alienação parental é uma realidade do meu quotidiano, e exercida, em regra, pela mãe, fruto de sentimentos que toldam a inteligência e a sensibilidade.

Quanto aos pais, na minha experiência, é uma minoria que cumpre integralmente com o acordado no que toca aos aspectos financeiros relacionados com a obrigação de participar nos custos da educação do seu filho, quanto mais aquela que cumpre com o seu dever afectivo. Uma infância feliz é uma infância segura, física e emocionalmente.

Depois há a escola. O número de horas que é aí passado vai crescendo quase todos os anos.

Exige-se, por isso, que a escola seja um prolongamento da casa, e que os professores tratem os nossos filhos com os cuidados de que carecem vidas tão vulneráveis. Na escola crescem e morrem sonhos, e desenham-se auto-retratos a cores ou a preto e branco, conforme a paleta que lhes dermos.

A maior parte dos pais faz o melhor que pode e sabe, num quotidiano de problemas sem solução segura. Muitos dos que me procuram vivem na angústia de verem os filhos cortar amarras demasiado cedo, e serem arrastados por correntes que não dominam, para destinos que não controlam.

O que fizemos de errado? É uma pergunta terrível quando se pressente que não há retorno. Pela minha parte, declaro solenemente que estou longe de ser um pai perfeito. Querem um exemplo? Fingi que não sabia do espectáculo da «Hannah Montana». Assobiei para o lado, troquei de passeio. Muitos dos meus amigos afrontaram a noite e os incómodos da multidão. Eu abstive-me. Imaginei perigos terríveis, humidades e pneumonias, retornos a casa de crianças ensonadas, arrastando birras. Pensei: Hoje a «Hanna Montana», amanhã os Metallica ou equivalentes, e tremi de pavor. Adiei a adolescência. Tenho esperança, contudo, que as minhas filhas me perdoem e que compreendam que também os pais, por vezes, têm os seus dias.
Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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