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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'O amor III' e 'O amor IV'
Tiago Salazar
Redação Lux em 1 de Outubro de 2020 às 10:00

'O amor III' e 'O amor IV' por Tiago Salazar

O amor III
A vida, as pessoas, tudo muda. Tudo se extingue, em última instância. Pouco ou nada sabemos que quer que seja, e escrever, por exemplo, pode ser apenas uma forma mais ou menos tosca de dar corpo ao pensamento-sentimento. Sinto que as tuas fé e esperança tremeluzem. Sinto-te triste, desiludida. Cantar e saíres pelo mundo devem ser das poucas coisas onde, ainda que mascarada, deverás cessar os pensamentos da embrulhada onde estás metida. É como eu com a rua, o trabalho, uma vulgar caminhada. O segredo sem enigma é que estes ínfimos escapes, um passeio, ver o mar, a gratidão de se viver num lugar como Lisboa, rente ao Tejo, os filhos saudáveis, podem valer tudo, quando nesse tudo já tantas vezes se sente terem sido gastas todas as palavras. Penso em soluções que me escapam. Somos diferentes, mas na essência somos apenas dois seres humanos magoados.
No fundo, é de um problema de confiança que falamos, e não a havendo plena, não pode haver entrega afim. Vale para os dois. Zangados, magoados, traídos, são sentimentos que decerto experimentámos e experimentámos. E nessas alturas, o mais certo é pormos tudo em causa. Queres verdadeiramente que eu saia da tua vida? Não creio. Queres paz. Queres estar bem. Queres alegria. Queres sair da melancolia que corrói. Isso pode fazer-se em conjunto no lugar de cada um procurar a sua solução (fuga?). Não sou terapeuta de almas, não sou pregador impoluto e não tenho a varinha mágica, mas já vivi o suficiente para estar certo de que Amar, amar bem, amar bonito, amar maduro, é aceitar o outro, ainda que nesse outro habitem os paradoxos, os obscuros e a incerteza próprios da falibilidade, da fragilidade e da fraqueza a que todos, sem excepção, estamos sujeitos.

O amor IV
Já sabemos que não é fácil, que nunca foi fácil e que nunca será fácil. Já sabemos que, apesar do amor, apesar da família, apesar da instituição, sempre se pondera se não haverá melhor sorte. A dias de uma nova mudança de casa, com as costas arqueadas de dívidas e sem possibilidade de as resolver no imediato, penso que só mesmo um grande amor pode resistir a tanta provação. Estás aqui porque sim? Estás aqui porque precisas? Estás e não estás, porque há muito em causa e é sempre melhor resistir? Estás porque é melhor estar do que partir? Estás porque no fundo há uma vontade superior a estar do que a partir? Estás porque admiras, respeitas, confias? Estás e não estás? Estou e não estou. Estás em fuga contínua e negação? Estás na esperança do eterno carinho? Estás na impossibilidade de atingir algo maior?
Há dias falei com um psicólogo do amor, da crise no amor, e ele perguntou-me apenas isto: ainda há possibilidades de se reinventarem? Disse-lhe logo que sim, sem hesitar. Falei por mim, claro. Não sei o que pensas ou sentes, a não ser que dizes sempre que estás como sempre estiveste, numa espécie de pacto de alma, de tem que ser, de sempre te amei e amarei, porém, de olhos tristes e condoída. Toda a alegria e todo o grande amor vive e renasce, e talvez nunca morra alimentado pelo amor-próprio. Todo o grande amor é um acto de paciência, humildade, aceitação, e lá estão as acendalhas do erotismo e da paixão, a par e passo do companheirismo. Há filhos, há uma vida própria, mas todo o grande amor é primevo, é primeiro de tudo, porque senão é apenas um projecto de vida, uma empresa, uma instituição. És uma bela mulher em fuga de ti. Tens o canto que é o teu céu e chão, tens os filhos que te amparam as quedas, tens-me a mim como qualquer coisa amargurada. Hoje o que somos? Um casal dominado pelas angústias: das dívidas, das dúvidas, do que se pode ainda fazer com tanto sofrimento acumulado, além de resistir.

 

(Crónica publicada na Lux 1065 de 28 de setembro de 2020)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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