ANIMAIS (POLÍTICOS) por Tiago Salazar
Em puto, na casa da avó Vessadas, na Rua Coronel Marques Leitão 25, 3.º Dto., havia um pequeno hemiciclo doméstico. Avó monárquica (do PPM), mãe de direita (AD), tio anarquista, tio comunista (PCP), tio socialista (PS) e vizinhança do reviralho. Volta e meia apareciam os tios do Algarve, do Rasmalho, uma dupla de agitadores, ateus e extremistas sempre bem--humorados de quem ouvia os ensinamentos mais afins do meu espírito de Robinson das avenidas novas. Os livros das estantes falavam de rapaziada dada às viagens sem destino (como “As Aventuras de Um Rapaz nas Florestas do Amazonas”, de Ballantyne) e nas traseiras de casa ficava o aeroporto, onde um dia, nas imediações, chegou a notícia de uma tragédia. Sá Carneiro e Amaro da Costa tinham morrido e com eles a quimera da AD. Em casa, a AD e a APU e as forças do PC e dos bigodes carlistas digladiavam-se, como mais tarde vim a ver, como repórter, com a ferocidade satírica das bancadas de São Bento. Tal como na Assembleia, havia nos debates caseiros tanto de comédia como de farsa ou mesmo tragédia, que por vezes acabavam com sobremesas amargas de tios engalfinhados aos sopapos, impropérios e sinapismos.
Um dia chegou um pastor alemão lá a casa, um cachorro a quem chamaram de Smic, em louvor de Ettore Scola. Privado da sua liberdade canina, o Smic trucidou as pilhas de jornais do Avante e do Diário de Lisboa, deixando o tio comunista em estado de anabiose como uma salamandra siberiana. Eu crescia animado entre a catequese de S. João de Brito, o enigmático apelido Salazar, parente remoto do Oliveira, de quem nada sabia a não ser de andar com as solas rotas, e as orações marxistas-leninistas como o santo e senha do novo homem. Por milagre fiquei profano, sobrenado a banhos lautos de pia baptismal, sem que me desse, de então para cá, mais do que o deleite de profanar – sem recurso a facas sarracenas – todos os crentes nas virtudes lenitivas do que quer que seja. Cruzes, canhoto, para os que vêem em tudo o que é vermelho papões ou ajuntamentos fascistas nos solidários da direita. Quando me perguntam das minhas tendências com um apelido destes, apenas respondo que tenho um membro (salvo seja) em forma de seta castrense, e é com ele que escrevo as minhas memórias de animal político.
Como disse Molero, sorrindo, a tusa é que interessa. A frase, dita de chofre, esconde toda uma trajectória mitológica, além do Deus Príapo. Pode ser dita de forma ingénua, lírica, irónica ou fraternal. A tusa a que aqui me refiro é a de enfrentar a vida sem vacilar. É claro que a tusa vive no âmago de cada um, mas só se despoleta (ou desponta) graças à acção mobilizadora de um outro(a), até um objecto, como esfregar um tijolo nas costas ou comer mariscos. Há quem a tenha para alimentar uma casa de família, e sofra de escoriações por tanto lhe dar uso. Outros arregimentam exércitos e partem para a guerra entesoados como mastros a pique. O importante é endireitar o mastro e agir. Pode ser a diletantar em governos sombra ou dando o corpo às balas e governando países, autarquias ou juntas de freguesia. Qualquer acção, porém, está sujeita ao crivo, que é como quem diz o juízo de outrem. Por exemplo, tomar por um bando de idiotas os comunistas que se mobilizaram para celebrar o 1.º de Maio e tomaram a Alameda de assalto largados de mini-bus e caravanas numa intenção de contágio político. Noutro diapasão, na Irlanda do IRA, juntaram- -se uns cem à esquina e tocaram a concertina (a distância dita segura) e foi um coro de aplausos. O que interessa é endireitar o mastro. Outro exemplo, urgente, emergente e calamitoso: como prevenir a catástrofe de quem não vê um chavo porque não pode trabalhar? Onde está o Estado provedor? Quem se atravessa de bastão contra as jigajogas de empresários anafados que fazem do lay-off uma escusa para negarem a solidariedade aos que lhes enchem a mula? Ali em baixo, na Alameda de todas as concórdias e discórdias onde jorram as águas luminosas, há dois cartazes recém-
-colocados a apelar à catarse de duas forças políticas distintas. Um pede o abaixamento das rendas, um bem essencial, e o fim da especulação dos senhorios, que ainda não reflectiram ser parte da calamidade. Outro exige os direitos básicos dos trabalhadores e o rendimento geral para quem esteja depauperado na ordem de um ordenado mínimo. Isto não vai acontecer sem a mobilização que não se faz sem o mastro empinado. Amanhã a tusa será desviada para uma saída voluptuosa às ruas.
(Crónica publicada na Lux 1052 de 29 de junho)