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Nacional
Alta Costura por Filipa Guimarães: 'Uma carta imaginária à Ministra da Saúde'
Alta Costura na Lux por Filipa Guimarães, jornalista e escritora Foto: Carlos Ramos
Redação Lux em 8 de Abril de 2021 às 18:00

UMA CARTA IMAGINÁRIA À MINISTRA DA SAÚDE por Filipa Guimarães

Cara ministra da Saúde,*
Eu tenho uma doença rara. Daquelas com nomes esquisitos e que, de tanto a repetir, quase se confunde com o meu apelido. É uma segunda pele que não escolhi e de quem ninguém tem culpa. Vivo dependente dos meus pais desde que tenho consciência de mim e dessa mesma doença neurodegenerativa. Não, não é Alzheimer nem Parkinson, felizmente. Não tenho ainda idade para isso, acho eu... Porém, senhora ministra, imagine só o que é viver, há um ano, com medo de que o vírus me escolha. Entre nós, confesso que até foi reconfortante quando ele apareceu. Não sei se é este o termo, mas senti-me menos só. Pela primeira vez, já não era a única pessoa a não poder sair de casa e a ter medo. Éramos todos. Por umas semanas, até me pareceu justo que as pessoas soubessem o que é estarem “confinadas”. Toda a vida vivi assim, com barreiras, umas mais visíveis do que as outras. Sei que a pandemia vai passar e vou continuar aqui, na minha cadeira de rodas, em casa dos pais. Pode não acreditar, mas até a preocupação deles me causa ansiedade, parece que é tudo a dobrar. Sei que, por mim, até me dariam a “vez” da vacina deles. Acontece que sou “a preocupação”. Talvez não esteja tudo na sua mão e peço desculpa se lhe pareço uma coitadinha. Não sou, mas acho que devia ser considerada doente prioritária pelo Serviço Nacional de Saúde. Não sou filha única e os meus pais e irmãos podem ter contactos de risco. Tenho falado com outras pessoas que, como eu, ainda não fizeram 50 anos. Juntando todas as doenças raras e os outros, com paralisia cerebral, não somos assim tão poucos. Estou muito cansada de ser exceção em tudo, de ser “especial” e todas essas coisas que me dizem. Quero ser vacinada já porque, apesar das minhas limitações físicas, não vivo numa ilha e também gostava de proteger quem cuida de mim. Sei que há pessoas em situações muito piores do que eu, mas eu luto diariamente. Pelo menos, só uma vez, não posso ser “excecional” para os governantes? Não sei mais que fazer, mas gostava que estivesse um minuto na minha pele. Vai ser bom, para si, sair dessa pele e perceber como é bom ter pernas, uma carreira, até ir a manifestações. Não posso esperar mais.
Obrigada

*Nota: Esta carta é imaginária, mas é baseada numa situação real e é dedicada a todos os doentes com doenças neurodegenerativas e com paralisia cerebral.

Crónica publicada na Lux 1092 de 5 de abril

 

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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