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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'Professores'
Tiago Salazar
Redação Lux em 9 de Julho de 2020 às 10:00

PROFESSORES por Tiago Salazar

Se professor é quem ensina (a andar, a falar, a pensar…) a minha avó Vessadas foi a primeira e grande mestra da minha vida. Antes de sentar o rabo na 1.ª classe, comecei por ir com a minha avó Vessadas para o Campo de Santa Clara, onde ela dava aulas aos neófitos. Eu ficava à retaguarda, nos bancos dos fundos, ao lado de um calmeirão. Como era o neto da “stôra” olhavam para mim de lado, mas com o tempo (fui lá umas poucas de vezes), acabei por ser incluído e ganhei mesmo a alcunha de Tintim graças a um redemoinho que perdurou até aderir ao semblante heavy metal na adolescência.
Nessa altura, os professores não eram apedrejados por fazerem destas coisas ultrajantes, como levar os netos para a escola antes sequer deles terem idade para isso. Nas aulas da avó Vessadas aprendi o bê-á-bá (e as linhas de caminhos-de-ferro e os rios e a tabuada) como os mais velhos costumam dizer “à moda antiga” (com açoites de régua e demais ensinamentos). No ano seguinte, quando comecei a escola primária no Bairro de São Miguel, em Lisboa, nas aulas da professora Maria Olinda parti em vantagem, o que em vez de ser um feito tornou-se penoso. Alguns dos coleguinhas de turma, julgavam-me uma ave rara, um sobredotado ou assim e olhavam outra vez para mim de lado. Para mim e para a Zara, não a filha do empresário do vestuário, mas uma belíssima goesa, também ela proscrita graças à idade avançada de 8 anos. Por solidariedade marginal, iniciámos um amor infantil e mantivemo-lo até ela debandar para Bombaim (o nome bizarro para uma criança fixei-o, porque ainda guardo a última carta dela, em que me chamava “peixinho”)

No liceu, comecei por ser aluno do Rainha D. Leonor e daí só recordo um professor de Ginástica com bigodes de piaçaba que me deu um 5 à custa de fazer pinos de acrobata chinês e espargatas como as meninas e os meninos do ballet Gulbenkian. No fim do primeiro período mudei-me para o Liceu de S. João do Estoril e, aí, tive o insuperável professor Joaquim Paiva, a quem devo os melhores puxões de orelhas, e os mais preciosos, superados apenas na importância pedagógica pelos da Maria Augusta Silva, minha editora no Diário de Notícias. O professor Paiva era aquilo a que se chama em rigor “uma sumidade”. Estava no liceu encarregado do Português, mas podia estar no Olimpo, ao lado de Séneca ou do Luís Vaz. Uma das primeiras aulas, depois de me recambiarem para S. João, foi a do professor Paiva. Era aula de teste, “Os Lusíadas” a debate e uma pergunta apenas, para desenvolver, sobre a Ilha dos Amores, que se teria passado entre tripulantes e ninfas? Estaria ali o busílis para a afamada miscigenação? Todo eu amoroso, dissertei então (de improviso) sobre as virtudes do Sol dos Trópicos no entumescimento (e enrubescimento) dos marujos do Gama e de como tal apanágio da lusa obra (e do pau para toda ela) ditou o nosso azar futuro. Fi-lo em poesia de pacotilha e não me teria dado mal na demanda, não fosse a provocatória observação do professor Paiva que me perguntou se só havia “intumescidos” na ilha. Então e as “engurgitadas”, não eram filhas de Deus? Dessa lição de sexologia quinhentista conservo as melhores impressões e, apesar do chumbo, da admoestação e do ralhete por semelhante palavreado, guardo até hoje a mais saudosa memória do aprendizado do professor Paiva.

P.S.: Anda por aí uma vaga selvática com eco planetário. Achas para a fogueira, gosto de as pôr na lhaneza do Alentejo, ou, nas coisas do intelecto, quando oiço e leio comentários assexuados. Isto é, ditos e escritos despidos de uma virilidade primária que nos faz, Homens (raça), criaturas do conflito. Uma boa trama carece de tensão. Tese, antítese e síntese (vem de Aristósteles, pelo menos). Mesmo as amibas têm estética e seguem uma correnteza. Sou de onde bate o coração, budista de Inverno, nudista de Verão, sócio do Sporting e fanático dos irmãos Grouxo. Isto pouco diz de mim, tendo, como todos, as minhas sombras de pecado. Um deles original: gosto de alguns padres (o Tolentino e o Mário, da Lixa), do Papa Chico, mas não tanto da Igreja e das suas incongruências activas. Por exemplo, como pode uma Igreja permitir a pobreza ao seu rebanho?! e são sempre tantos carentes de sopa e descanso, a não ser manietando, como os hindus, com a arma do karma, a aceitação da sorte de cada um. Deus é assunto secreto que guardo para o meu botão esquerdo, mas não se pode esperar que seja um Pai a resolver as infantilidades recidivas dos filhos. Culpar o Padre Vieira de uma forma retrospectiva é como dizer aos brasileiros desculpem lá o Cabral, ou que Deus é o culpado disto tudo. Quanto a mim, que até simpatizo com duelos, carolos e debates acalorados, dizer que não gramo os Bolsonaros, Trumps ou Venturas (por serem uns fascizóides, sectários, manipuladores, desumanos e oportunistas) não faz de mim um exemplo democrático se me puser a dizer que o melhor ainda é linchá-los. Lixá-los, ainda se admite, não lhes dando votos, fazendo-os provar do veneno da sua impostura. De resto, o ataque ad hominem tem um risco elevado, pois o atacante é imperfeito, e o feitiço sempre se vira. Ainda o melhor é usar da arma mais notável e que nos distingue no reino animal: o riso. Fazer de cada dia triste que passa na balbúrdia do Oeste de todos os Nortes uma hipótese de não chorarmos a sina da cova, brincando com coisas sérias.

(Crónica publicada na Lux 1053 de 6 de julho)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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