O JEITÃO QUE DÁ TER UM MARIDO OU UM FILHO por Filipa Guimarães
Talvez quem seja casado ou equiparado (“junto”, a viver em união de facto, por exemplo) não me perceba bem. Quiçá, seja antes uma forma de estar, esta mania das pessoas empatarem decisões e mesmo opiniões escudando-se na opinião de terceiros. Para qualquer coisa que seja, precisam sempre de consultar a cara-metade. Desde a compra de uma televisão até à marcação de um apartamento de férias, a pessoa, em vez de dizer apenas que vai pensar, diz: “Tenho de perguntar ao meu marido” (ou “à minha mulher”). Claro que não será sempre mentira, mas muitas vezes é um tique das pessoas para não se comprometerem. É, aliás, uma particularidade muito portuguesa: a justificação de tudo e mais alguma coisa. Como se o “vou pensar” ou o “não sei bem se é isto que quero” fosse algum insulto. É como quando convidamos alguém para almoçar ou para um encontro. Se à criatura não lhe apetece ou, pura e simplesmente, não pode, não tem que nos explicar. Muito menos com pormenores. Temos de ser mais “nórdicos”, ou seja, mais reservados sem que isso signifique uma desconsideração. Falo contra mim. Quantas vezes já perdi chamadas em espera só porque perdi imenso tempo a esclarecer por que tinha de interromper? Claro que tudo depende da intimidade entre as pessoas, mas... há limites. Isto vem a propósito de uma senhora que vinha fazer um serviço doméstico a minha casa. Tínhamos combinado encontro na segunda-feira, às nove da manhã. Passada meia-hora recebo um SMS interminável a explicar que, afinal, não podia vir, pois, tinha de ir “socorrer um senhor idoso” que não tem tinha “mais ninguém”. Pronto, contra esta urgência, o que podia eu fazer? Mal chegou, continuou a explicar o atraso: “Sabe como é, lá no meu bairro há muitos preconceitos e como ele é homossexual só me pede ajuda a mim.” Ao que tive de responder: “Pois, é chato, mas tenho de lhe dizer o que preciso, pois já não temos muito tempo.” Só me faltou explicar-lhe, tintim por tintim, todo o transtorno que me tinha causado. Neste caso, não houve marido envolvido, mas vai dar ao mesmo. Quando se trata de arranjar desculpas, as crianças pequenas também dão muito jeito: adoecem ou choram, vomitam ou magoam-se a toda a hora. Claro que há pessoas e pessoas e formas de estar em sociedade mais modernas e civilizadas. Ainda há uns meses uma amiga, casada e com filhos já em idade de votar, contava-me a rir, uma “saída” de uma colega de trabalho. A Ana nunca foi o género de ir perguntar ao marido que roupa vestir. Desde sempre que se veste muitas vezes de preto. Mas um dia o tal espírito mais primitivo perguntou-lhe: “O seu marido deixa-a vestir-se assim?” Ao que ela respondeu: “Como? Deixa?! Está a perguntar-me se ele deixa?” Pois é, em pleno século XXI. E não estamos a falar de pessoas com 90 anos. Os solteiros têm de começar a arranjar estes subterfúgios também. Será que os animais de estimação podem fazer os papéis de cônjuge ou filho? Já andámos mais longe.
(Crónica publicada na revista Lux 1062 de 7 de setembro de 2020)