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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'A escrita e a vida'
Tiago Salazar
Redação Lux em 10 de Setembro de 2020 às 10:00

"A escrita e a vida" por Tiago Salazar

Somos (sou) as circunstâncias de um tempo, um lugar, uma época, um bairro, dos genes, de quem nos cruza o caminho, as escadas da Rua Coronel Marques Leitão, 25, por exemplo. O prédio de Alvalade onde morei mais anos seguidos era habitado por uma maioria de jornalistas e escritores decanos, como Afonso Serra e Adelino Alves. Os meus avós tinham ido para ali no princípio dos anos 50 e com a morte prematura do meu avô Garcia, pouco depois de se instalarem no 3.º direito, deixou de haver um jornalista até eu mesmo entrar no ofício por ordem natural das coisas. Nenhum dos meus tios ou a mãe seguiram os passos do avô Garcia e calhou-me o enamoramento pela arte de contar histórias. Antes de publicar um artigo de jornal ou revista comecei por editar contos no extinto DN Jovem. Ensaiara na infância a redacção de um romance passado na antiga URSS, as aventuras de um rapaz aspirante a comunista que se alojara clandestinamente no trem de aterragem de um Tupolev da Aeroflot e, por ser ficção, conseguira aterrar em Moscovo sem ficar como uma salamandra siberiana em estado de anabiose. Uma vez chegado à Rússia dera de caras com o país dos seus sonhos, feitos a partir das leituras de Tchekhov, Dostoiévski, Bulgákov e Puschkin, entre outros centauros da literatura russa. Se tivesse lido com olhos de ler “A Morte de Ivan Ilitch”, “Guerra e Paz” ou “Margarita e o Mestre” tinha-me deparado com retratos sociais tudo menos abonatórios dos czares ou sovietes, castradores e tiranos da mesma cepa. Nesse romance, nunca terminado e desfeito em cinzas, o rapaz que era eu mesmo, instalava-se como estivador nas docas de São Petersburgo, ignorando a mudança de nome para Estalinegrado e disposto a fazer vida entre os utópicos comunistas. Mais tarde, vim a viajar pelos domínios soviéticos com um amor da adolescência, cujo pai era responsável pelas viagens do partido e pude tirar as minhas tristes conclusões do sonho soviete.
Quando regresso a esses verdes anos dou por mim a pensar como se constroem as grandes ilusões. É como ter um pai que abomina toda a espécie de governação não tendo, porém, um sólido discurso de anarquista. Explico melhor as minhas inclinações rebeldes e libertárias por ter provado de todos os caldos políticos deste mundo, viajando anos a fio por terras democráticas e totalitárias e fermentando os meus ideais sem dogmas. Acabo sempre por me sentir em casa apenas por ser parte do mundo, feliz e contente por ter tido um valioso caldo de pais intelectuais, como o falecido Afonso Serra, vizinho do andar de baixo.
A primeira vez que fui a sua casa dei por mim submerso numa nuvem de tabaco de cachimbo a receber livros ditos por este de fundamentais para a construção de uma identidade assente nos mestres da língua nativa, como “Notas Contemporâneas”, do Eça, ou “A Criação do Mundo”, de Torga. Serra, autor aclamado por “O Mundo no Lápis de um Repórter”, foi o mais próximo que tive de um Albert Londres, até privar com o Miguel Sousa Tavares dos tempos de a Grande Reportagem e durante o seu tempestuoso namoro com a minha mãe, lembrando os seus hábitos de acender um cigarro, esticar os pés em cima da secretária, agarrado a um livro, antes de desatar a escrever com fúria apaixonada contra todas as injustiças e sempre movido pela poética da narrativa. Recebi de Afonso Serra ensinamentos preciosos, a começar por uma regra de três simples: ler, ler, ler, e ler em voz alta cada frase. Nunca mais deixei de o fazer em tudo o que escreva e o resultado parece-me eficaz. Nada sei de música, mas faço dos meu textos obras de ritmo e harmonia. As palavras devem ser legíveis e as histórias, por mais insólitas, afins de qualquer ser humano na sua questão de o que fazemos nós aqui. Voltar a Alvalade é regressar ao tirocínio de que um mundo sem jornalistas e escritores não passa de uma terra árida.

(Crónica publicada na revista Lux 1062 de 7 de setembro de 2020)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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