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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'Das Coisas Simples I' e 'Da Beleza I'
Tiago Salazar
Redação Lux em 10 de Dezembro de 2020 às 10:00

por Tiago Salazar

DAS COISAS SIMPLES I
Ao nível do palato mole satisfaço-me plenamente com vinho branco (estirpes durienses em particular), ostras e coquilles (estirpes Saint Jacques e de Cacela Velha), percebes (percebem?), uma geladinha artesanal de copo gelado, um whisky irlandês, um puro siglo V, uns tremoços, um bife argentino ou de atum açoriano, uma mesa de amigos camaradas (sem o peso cáustico da palavra). Ao nível da alma, nada como uma noite de amor, pois claro, noite em claro, claro está. Oxalá nunca diga como disse o Buñuel, que me libertei enfim do tirano. A alma fica feliz e contente se os filhos dão umas belas gargalhadas e se soltam como só o fazem as crianças ou os loucos sadios, e talvez os humoristas e comediantes. Fico feliz quando escrevo e a escrita sai como agora, fácil, alegre, ladina, satírica se for o caso, e me der para dizer que ficarei feliz se o Mexia e seus comparsas baterem com os costados no cárcere sem luz que os alumie. Fico feliz a ouvir o Keith Jarrett (ainda que o saiba indisposto e jarreta) ou o JP Esteves da Silva, e tudo o que Mozart pariu, porque nada supera a emoção de ouvir um piano. Fico feliz a ler o Luiz Fernando Veríssimo, o Groucho Marx, o Woody Allen lúbrico ou a turma da Mónica. Felicidade é ver-me rodeado de pessoas felizes, de gargalhada fácil e generosa, que animam os outros porque é o que faz falta, e nada cobiçam, nem querem aclamação ou se querem é justa que lhes seja retribuída. Felicidade é ser capaz de fazer rir, nem que seja com umas cócegas ou a brincar ao chupa cabras. Felicidade quanto custa? Até aqui não fiz as contas, mas não deverá andar para além do ordenado mínimo. Felicidade é poder não pensar nas moléstias que traz a falta de dinheiro ou saber que a felicidade deu lugar à melancolia porque o dinheiro, que não compra a Felicidade, é bem capaz de ajudar a alugá-la.

DA BELEZA I
Caros leitores, quantos de vós sentistes nos últimos tempos sombrios a força dos malmequeres em flor? Ponde as vossas íris em harmonia com esse horizonte em sol agora que a tarde se põe mais cedo, lá onde nenhuma autoridade vos alcança o vosso (nosso) grito de liberdade. Vede-o. É tão simples, o desvio da hipocondria a sós, livres de máscaras, à luz coada dos ultravioletas, aí, onde somos todos crianças, putos e petizes, marimbando como uma ave galharda e tresmalhada. Nem o Tejo sebento, a relva a tresandar de caca, os ciclistas aselhas, os polícias bisonhos de giro, os bancos encardidos, as venezianas podres ou as notícias de miséria e corrupção alarve vos poderão demover da alegria simples deste vosso (nosso) momento. O preço da felicidade/liberdade de nos pormos a andar a sós com os nossos passos é inegociável. E não vos esqueceis que na viagem não importa o destino (pois o destino é de onde partimos), mas o relato do sucedido entre ir e voltar.

(Crónica publicada na revista Lux 1075 de 7 de dezembro)

 

 
Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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