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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'A foice, o martelo e a longarina'
Tiago Salazar
Redação Lux em 12 de Novembro de 2020 às 10:00

'A foice, o martelo e a longarina' por Tiago Salazar

Todo o passo tem um peso e uma dimensão. Quando me juntei ao partido (PCP) recebi diversas advertências. “Serás, doravante, um escritor comunista”, aventou um jovem camarada, com um esgar leninista.Se o comunismo de um escritor está em arregimentar as classes populares à sua leitura (e entendimento), o prognóstico do camarada Soares trazia laivos de profecia. Falarei adiante disto de escrever em associação a uma ideologia.Nasci em Fevereiro de 1972. O mais certo é ter ouvido a palavra comunismo a primeira vez no hemiciclo de Alvalade. Andava lá por casa um tio (falecido) afecto aos vermelhos. O tio esforçava-se por converter a família à irmandade rubra. A mim fazia a conversão com recurso a carolos, aplicados com os nós das falangetas deformadas. A cabeça, pelo menos, ficava vermelha dos galos, nada desaguando no miolo de admirável vindo do método trauliteiro do famigerado tio. A fórmula musculada de passar o dogma tinha tudo para resultar ao contrário, mas, por gostar de partilhar os meus brinquedos com os mais desfavorecidos não me custou encarar a distribuição da minha riqueza (automóvel, sobretudo) pelos camaradas de rua. O PCP deu lugar à CDU e comecei a interessar-me por siglas e símbolos, como deter-me na marca de um carro. A estrela de pontas prateadas dos Mercedes. O jaguar predador. As asas de morcego dos Mazdas. O W do trabalho dos Volkswagen. Ouvir o motor de um Aston Martin faz-me sentir a emoção de um piano tocado de forma exemplar (Keith Jarrett, por exemplo). Entre as “Variações Goldberg” interpretadas por Glen Gould e as curvas arriscadas de Senna da Silva há um som comum: melodia. Que tem isto a ver com o comunismo? A combustão do Sputnik, a perícia de Gagarin,  os poemas de Yevtushenko estão unidos por uma matriz que começa numa oficina. Do princípio ao fim, há todo um trabalho que conduz ao Deus Ex Machina. Isto poderá ser provado por quem se detenha na vida de um laboratório em qualquer parte do Cosmos. O mecânico António Chiquita está para a sua garagem Manique como Da Vinci para os esquissos de engenhos voadores. Posso dizer isto provando-o. Um dia entrei na garagem Manique com uma presumível avaria hidráulica. Chamei o mestre Chiquita e disse das minhas suspeitas. “Vamos ouvir”, disse. Debruçou-se então sobre o capot e pediu uma ligeira aceleração. “Devo dizer-te que andas a ser demasiado brusco com as travagens. O problema é do injector.” Escutei o diagnóstico, surpreso com a certeza do dito. O mestre anda sempre de caderninho no bolso e lápis atrás da orelha. “Eu faço-te um desenho” e pôs-se a rabiscar “a alma do carro”. “Queres que um carro dure, então, cuida-o com esmero e não te limites às limpezas.” O meu primeiro carro foi um Datsun 1200, de 1972. DN na matrícula como o jornal onde tinha assentado praça como estagiário. Comprei-o com o primeiro ordenado ao Raul Esperto, um mecânico e piloto de automóveis que o tinha quitado para a competição. Fui até Ponte de Sôr na Rodoviária Nacional e entrei na oficina de olhos a brilhar. O Datsun estava no elevador a afinar. Esgueirei-me à cafurna do silo e fiz por aprender mais qualquer coisa do que as lições básicas do meu pai, entre ver o óleo e a pressão dos pneus, as folgas na direcção e o estado das pastilhas. Apreciar um motor era então, como ainda hoje, como um burro a olhar para um palácio. Fui dar uma volta à terra com o Raul Esperto ao volante, a explicar-me a ciência da tracção à retaguarda. “Se aprenderes a dominar os piões vais dar-te bem”, disse. Antes de me fazer à estrada de regresso a Lisboa fui para um descampado ensaiar valsas. Primeira, segunda, terceira, travão de mão e zumba, o carro a rodopiar como um fuso. Saí a todo o pano estrada fora rente às águas de Montargil. Prego a fundo até para lá de onde se podia contar a velocidade, o ar dos camiões a soprar quente pelas janelas, os cheiros do carro misturados com os odores das paisagens a perder de vista. Na chegada à Lisboa, o tubo de escape caiu e quase fiz um cavalinho. Fiquei desolado e lá fui de reboque para a oficina de um amigo do Esperto, onde levei um puxão de orelhas. “É uma ganda máquina, mas já leva 20 anos de estrada”, ralhou o Esperto ao telefone no PBX. Foram muitas as viagens até Ponte de Sôr para ter as mãos, os olhos e os ouvidos do Esperto a cuidarem do Datsun. Até ao dia em que como todas as vidas tudo se acaba. Regressado de mais uma revisão, de pneus insuflados e um sol de rachar ia a toda a brida a serpentear as curvas da barragem quando um patego entrou sem parar na via rápida e quase me levou para o Além. Só me lembro de rodopiar nos ares e ir aterrar numa valeta, de volante rachado ao meio e metade do corpo fora da janela. Por acasos insondáveis, segundos antes de fazer a curva abri a janela do meu lado em par e saí cuspido no lugar de ficar esmagado entre o tejadilho e os bancos. O patego sobreviveu à aselhice e ao susto e tornou-se meu leitor até hoje.

 

(Crónica publicada na revista Lux 1069 de 9 de novembro)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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