CICATRIZES por Tiago Salazar
Ontem, numa pose ‘iogui’, dei por mim a fixar os olhos numa cicatriz rente ao joelho esquerdo. Percorri então o mapa de todas as cicatrizes deste corpo onde habito vai para quarenta e nove Primaveras. Foi como viajar num relâmpago ao instante do rasgão, tiro ou facada, como se viaja, sem que o pensamento o consiga extirpar, a todos os instantes decisivos. Por exemplo, o dia 4 de Dezembro, por duas vezes me trouxe episódios memoráveis, quando dois seres carregados de cicatrizes se encontram na esperança de sararem as suas feridas invisíveis. A cicatriz do joelho esquerdo desponta na densidade de pêlos como uma clareira na floresta. Resultou de um malho na minha bicicleta Tip-Top contra uma parede quando, por gula lúbrica, desviei o olhar para as pernas da Lúcia. O sangue a jorrar, a jante empenada, o guiador virado do avesso, o garfo partido, a Lúcia às gargalhadas, e tudo se passou como esbarrar num paredão de felicidade.
O lado esquerdo é o meu lado de todos os massacres e chacinas. Um dia, o Joca, um puto de modos aciganados, resolveu cravar-me um x-acto na palma da mão esquerda, tudo porque se achou encurralado por um ajuste de contas da horda de hunos do bairro de Alvalade. Ensopado de OR+ até ao pulso num lenço cheio de ranho cheguei ao posto médico de entranhas à vista, de onde podia ver a brancura elástica do tendão do pai-de-todos numa papa vermelha e grená. Graças à incúria do enfermeiro, que me recambiou para casa de mão atada, só levei uma mão-cheia de pontos no dia seguinte, e no lugar de uma pequena cicatriz tenho um lenho de Frankenstein a cruzar-me as linhas do destino.
Parti uma vintena de ossos e guardo a cicatriz mais singela do choque com a cachola do Godinho, no pátio do bairro de S. Miguel. Chocámos os dois à esquina do refeitório, quando íamos chamar a directora da escola para lhe cantarmos os “Parabéns”. O Godinho vinha largado de uma ribanceira que ligava os recreios e assentou-me a testa em cheio no nariz. Quando olhou para mim desmaiou e temi o pior ao vê-lo sucumbir aterrorizado. Fui a correr à casa de banho olhar-me ao espelho para ver o estrago. A visão reflectida de um buraco no meio da cara, de onde saía um jorro de sangue em catadupa, fez-me desfalecer como se tivesse chegado a minha hora e juntei ao nariz um traumatismo craniano por conta de uma marrada no bidé. Acordei dentro de uma ambulância, entubado e estendido numa padiola, rodeado de maqueiros em sobressalto a injectarem--me líquidos estranhos. Voltei a cair nos braços de Morfeu ao som de uma sirene estridente e todas as vezes que oiço o ‘tinóni’ viajo para o Bairro de S. Miguel e a cabeça macrocéfala do Godinho. Metade da cana do nariz ficou numa tigela de esmalte do Hospital de Santa Maria e passei a ter meio nariz de pugilista. Lembro-me de me doparem com uma máscara de aviador dizendo-me que quando despertasse estaria belo como um príncipe.
Um dia, a jogar à bola, fiz uma cueca ao Fanã e o Cabanas, para me barrar o golo, deu-me a sua famosa canelada mortífera de trivela, indo aterrar de costas e desamparado num calhau. Além de um par de costelas rachadas, o anelar da mão esquerda ficou colado ao mindinho com um ruído de um quebra-nozes. Na ortopedia do Santa Maria, o médico olhou o RX e sem demoras pediu-me que assobiasse, enquanto me pegava na mão como um carniceiro a apalpar um lombo de vitela. No lugar de um assobio dei um grito como se estivesse a parir, por conta de me endireitar o dedo a sangue frio. De tala e braço ao peito saí dali a rezar-lhe pela pele na esperança de que nessa noite engolisse um osso de frango.
Tenho 17 cicatrizes, de pontos e costuras mais ou menos conseguidos na obra do costureiro, a mais acarinhada de uma circuncisão tardia, que resultou num 3 em 1. Por conta de duas tesouradas inguinais, decidi que era daquela que me convertia à pequena família dos circuncidados. Um dia, à entrada no aeroporto de Israel, levava material suspeito para os policiais de serviço e não fora o arreio forçado e inexplicável das calças, e a confirmação inusitada da ausência de prepúcio, e o mais certo era ter sido detido por suspeita de tráfico de livros cabalísticos.
(Crónica publicada na Lux 1058 de 10 de agosto)