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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'O amor VII' e 'O amor VIII'
Tiago Salazar
Redação Lux em 15 de Outubro de 2020 às 10:00

'O amor VII' e 'O amor VIII' por Tiago Salazar

O amor VII
De que falamos quando falamos de amor? perguntou em título o escritor (do amor e desamor) Raymond Carver. Falamos em primeiro lugar do amor conhecido, de mãe, pai, aos filhos, e dos amores da vida. Talvez um amor supere os outros, o amor ao Criador, em havendo crença e seja esse o maior dos amores por do outro lado não haver a hipótese truncada do amor que traz a censura, o despique, a quezília. O amor pode ser tão grande que dá lugar ao desamor. Mas se já se chegou ao desamor uma e outra vez, por ignorância, orgulho e incultura, o mais certo é não se ter a grandeza de voltar ao amor e desatar o conflito. Os maiores conflitos do amor nascem de duas energias afins: o dinheiro e o sexo. Se ambas abundam o “amor” titila. Se o dinheiro se esfuma em contas, fracassos de gestão, excessos e avarias, então o sexo atrofia ou passa a ocupar o lugar de um paliativo. Ralhar sem razão e embirrar sem motivo são sinais (indicadores, de dedo apontado) de um orçamento minguado. Tal como dificilmente se endireita o que nasceu torto, e por nascer torto falamos de confundir amor com paixão ou simbiose ilusionista. Há, contudo, milagres de pães e de renascidos. O mais elevado dos amores é o que reconhece a liberdade do outro (até de partir) antes de protestar. Nesse caso pode dar-se a hipótese do grande amor. O amor livre de partir e ficar.

O amor VIII
Vamos seguir este raciocínio, se me permitirem: nisto do amor conjugal, vai sendo uma raridade achar amores de boa cepa, daqueles a quem já disse do encontro mútuo e do respeito muito. Quando se dá o clique em simultâneo já estamos no domínio do encontro e do achamento (para lá da conquista), ainda que nunca se vá saber se a voltagem foi mais de um ou de outro. Porventura, esbarramos num certo tipo de pessoa não por obra e graça do espírito santo, mas por desígnios sondáveis da psicologia. Isto é, atraímos padrões, o do pai e o da mãe, repetindo nós mesmos os padrões recebidos. Se é dos genes, do karma ou do mero entalhe, o facto é andarmos nisto vidas inteiras, por vezes hipotecando as possibilidades de uma felicidade mais completa, digamos assim. Quando o amor é maiúsculo começa por aceitar o outro, tenha ele a forma e o feitio que tiver. O corpo mais perfeito é o da pessoa amada. O ser mais perfeito é aquele e nada mais. Diante da adversidade que sempre vem, virá a pergunta de parte a parte: porque havia de embicar para aqui com tanto ser mais dotado neste mundo? Talvez a partida ou o desejo de partida para outro lugar (mesmo  solitário), no lugar da humildade do reencontro não traga mais do que um novo espelho partido, um novo ciclo de repetição de erros, como o escultor que tira a rugosidade na demanda do macio, se é o macio que persegue, e dá por si a aspirar ao imperfeito como a mais bela das possibilidades. Creio bem haver em todos os lados deste mundo um denominador comum a todos os binómios do amor: o respeito. O respeito pelo que é o outro, que mais depressa, ou mais lentamente, se aperfeiçoa, porque o maior calhau também é sujeito a cambiantes, como também envelhece, adoece e perde as faculdades, e um dia morre. Um grande amor nunca morre. Pode esgotar-se. Pode arrastar-se combalido por provações, orgulhos e feridas por suturar. Podemos dizer, após a desilusão, nunca o conheci. Como mudou tanto! Enganou-me. Traiu-me. Todas estas observações não passam de consequências dos primeiros olhares embaciados, quando ainda dominava o manto diáfano da paixão. O grande amor nunca nasce espontâneo. É uma construção infinita. É um trabalho diário ínfimo porém desmedido. É uma ocupação como uma arte qualquer, sujeita a avanços e recuos, mas onde deve apenas imperar a verdade.

(Crónica publicada na revista Lux 1067 de12 de outubro)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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