AMOR À ARTE (E À CAMISOLA) por Tiago Salazar
Saiu há dias um livro diferente do João Tordo. Um livro íntimo sobre isto de escrever ou de viver de e para a escrita. Conheci o João na sua infância literária (entrevistei-o até, para a pretérita GQ) e impressionou-
-me, desde logo, a sua determinação em sacrificar quase tudo (tirando escrever crónicas, argumentos e dar cursos) para se dedicar ao sacerdócio do ofício mais solitário do mundo, a par da masturbação (como me disse um dia o galego Camilo José Cela). Pelo pouco que sei, o João hipotecou uma vida de marido e pai de filhos e casou com a Literatura, onde passa agora a existir na sua obra um ensaio, a vários títulos exemplar. Quem queira fazer vida de escritor tem aqui um ensejo de como isto não é para meninos. Não basta ter o dom, o gosto, a classe, a imaginação. Como deixou escrito o seu mestre Saramago, escrever é como carpinteirar uma cadeira. Por mais hábil a fazer moldes, nunca se sabe a forma final. Não sei se se nasce ficcionista ou romancista ou poeta, mas, no meu caso, como ouvi da boca de uma das minhas mestras, a Maria Velho da Costa, a escrita é-me tudo à vida. Sem contar com os primeiros contos publicados no DNJovem e as premiadas redações juvenis, fiz do jornalismo o tubo de ensaio para o ofício que gostaria de ter em exclusivo, a Literatura (com caixa alta), mas como diz o João, viver da venda de livros em Portugal, enfim… Admiro, por exemplo, o escritor da Covilhã, Manuel da Silva Ramos, que morou num T0 de magra renda, na Villa Sousa (Graça, em Lisboa), onde faço questão de contar aos turistas a história de ter ali sido escrita uma das obras mais consistentes e originais em língua portuguesa, e bastaria o romance “Ambulância” ou o livro de contos “O Sol da Meia-Noite”.
Agora, o que é um escritor? Começar por editar livros de Viagens, e foram quatro de seguida, cria um rótulo e isso, já se sabe, é o cabo dos trabalhos para arrancar. As crónicas são onde me sinto peixe na água e voltei a elas mais três vezes em forma de livro. Fui adiando um romance, por várias razões, a começar por passar os dias a trabalhar noutras escritas, de partos difíceis, por mais rápido no gatilho. Um dia nasceu-me o impulso vital, como acredito nas coisas, do nada aparente, a história a pedir para ser contada, como um amor relâmpago a pedir para ser vivido.
Contra mim falo, mas um escritor não é mais sagrado do que outro artista. Há belas artes para todos os gostos. Dançar no varão ou andar no arame, por exemplo. Juntar o erotismo ao funambulesco é o que faz de um escritor um artista. Imaginar o coup de foudre da bailarina (stripper) fora-de-horas, quando esta sai, triste e pesarosa, pela porta dos fundos de um bar decadente, a chorar a magra jorna, conspurcada na sua dignidade de fêmea por olhares e mãos e olhares concupiscentes, isto quando dá de caras com um funâmbulo-sonâmbulo a caminhar entre postes de electricidade. Como foi ele ali parar? Como foi ela deter-se nele? Como assim desatou um caso de amor ou não desatou, porque o funâmbulo-sonâmbulo morreu electrocutado. Eis a habilidade de tornar uma banalidade improvável num assunto cativante. É uma alegria receber moedas e notas (e estrelas), além de aplausos (ou likes e corações and so on) por brincar e destrinçar o mundo de todos os dias e as emoções de todos os tempos, imaginando, revestindo-o de um interesse legível.
Podia falar nas senhoras que exercem o ofício mais antigo no mundo ou das patinadoras no gelo ou dos halterofilistas e de um sem-número de artistas. Falo do escritor, o pobre escritor que recebe 10% da sua arte por conta da repartição dos outros 90 por editor, livreiro, distribuidor e todos os implicados no objecto livro. O escritor pratica uma arte difícil e para ser escritor não basta frequentar uma escola. Escrever e ler aprende-se. O engenho aguça-se como o gume de uma faca. A necessidade (ou a ambição, ou as duas juntas) ditam as contingências do que o escritor escreve, não sendo menos escritor o poeta de versos curtos do que o grande prosador maratonista. A cultura pode ser apenas um acto de persistência, como acordar às 4 da manhã e fazer como o agricultor, trocando a lavoura por lavrar o chão da escrita, ou amassar o pão, ou caminhar no arame (e dançar no varão). Um escritor que abdica de ter filhos – e não necessariamente de uma mulher ou homem de instinto mecenas que lhe podem dar muito jeito – já alivia boa parte dos seus encargos, podendo dedicar-se em exclusivo à sua arte, desde que não lhe dê para o burguesismo. Tal como um escritor que se sujeite a dormir numa mansarda, quarto de periferia ou até numa tenda para poder executar a sua arte sem o fantasma das contas. Nada disto, porém, faz o escritor, e muitos escritores só despontam tarde quando a experiência lhes permite juntar a frescura da invenção à sabedoria do tempo vivido. Por último, não é mais ou melhor escritor o que mais vende ou mais publica. Quantos golpes de marketing não parem ratos e ratazanas? Esse é um acerto de contas que fica a cargo do destino. Lembro aqui um escritor de dois livros curtos, cuja obra vale por todos os livros que li: Norman Maclean, “Passa lá um rio”.
(Crónica publicada na Lux 1054 de 13 de julho)