Foi posto à prova várias vezes, mas a sua fé inabalável tem-lhe dado a força para superar e sair mais forte dos problemas que enfrenta. O último, um cancro da mama, voltou a mostrar a resiliência do cantor, que diz que adora viver. Com quase 55 anos de carreira e 5 milhões e meio de discos vendidos, Marco Paulo continua preparado e a fazer planos para o que ainda está para vir.
Lux – O Natal é uma época de que gosta?
Marco Paulo – Para mim, o Natal divide-se em duas épocas. Em criança, gostava muito. Vivi sempre em terras diferentes, porque o meu pai era funcionário das Finanças, e era transferido para vários locais. Nasci no Alentejo e, aos 5 anos, eu e os meus dois irmãos (a minha irmã estava com os meus avós em Lisboa) viemos para Alcabideche. Não festejávamos o Natal, mas depois fomos para Celorico de Basto, Arcos de Valdevez, no Minho, e aí já seguíamos as tradições. Íamos apanhar musgo para fazer o presépio e ouvíamos a Missa do Galo na rádio, a mesma rádio onde aprendia músicas. E a minha mãe fazia tudo, as filhós, as rabanadas... E lembro-me que, por muito que eu gostasse, lá em casa não se ofereciam brinquedos, mas punhamos o sapatinho na chaminé e havia um par de meias, ou uma camisola, ou umas calças… e eu achava muito bonito, levantar-me de manhã e ir à lareira ver o que o menino Jesus tinha deixado… nem dormíamos de noite. Depois, muito mais tarde, já com o meu afilhado, o Marco António, voltei a festejar. Ele era a alegria dos Natais, foi sempre uma criança muito sociável e brincalhona, enchia esta casa por completo e as prendas eram todas para ele. E é engraçado porque, como em pequenino nunca recebi um único brinquedo, mais tarde, vinguei-me e dava brinquedos ao meu afilhado. [risos] Depois o meu pai faleceu, a minha mãe faleceu e durante uns tempos não festejei o Natal. Não tinha vontade.
Lux – E este ano como vai ser?
M.P. – Com o Marco António já crescido e sem os meus pais, a magia do Natal perdeu-se mais. Esta árvore de Natal, que está aqui para dar um pouquinho de brilho à casa, é sobretudo uma maneira de eu partilhar com os portugueses e com os meus fãs o nascimento de Jesus, a quem peço o melhor para Portugal. É uma forma de mostrar a minha gratidão pelo apoio que me têm dado. Mas vou ter um Natal com todos os cuidados que devemos ter. Tenho pessoas amigas que gostava de convidar, mas não o vou fazer. Achámos melhor não nos aventurarmos para o bem de todos nós. E como me estou a aproximar do meu aniversário, festejo o Natal e o fim de ano no dia dos meus anos. [risos] Tenho que aproveitar todos os momentos da minha vida, já sofri tanto.
Lux – O Marco Paulo soma já quatro sustos, com o primeiro cancro, a massa no rim direito, um princípio de AVC e, mais recentemente, um cancro na mama. Tem sido posto à prova variadas vezes.
M.P. – Tenho sido posto à prova e Deus, Nossa Senhora e Jesus Cristo têm ajudado muito. Porque com qualquer um dos problemas que tive, se não tivesse sido diagnosticado a tempo, tinha morrido. Por isso, já nasci para a vida quatro vezes.
Lux – Há esse sentimento de um renascer?
M.P. – Sim, há. Porque quando sou diagnosticado com qualquer problema grave de saúde, penso sempre: “Será que já não vou cantar, que já não vou ouvir os aplausos do público, que já não vou ver as minhas fãs?” No primeiro cancro, tive um diagnóstico péssimo. Era praticamente uma sentença com dias contados, caso não reagisse bem. Mas na altura reagi e pensei, “vou conseguir”.
Lux – Teve sempre essa força?
M.P. – Tive. A força de querer recuperar em cada uma das três operações que fiz. E sinceramente acho que rejuvenesço de cada vez que saio de uma situação dessas. A minha voz fica mais bonita, a minha pele fica melhor… Quando olho para o espelho, gosto de me ver, gosto do brilho dos meus olhos, do sorriso, da minha gargalhada, porque sou um apaixonado pela vida, gosto muito de viver. Tenho medo da morte, porque vi a minha mãe dentro de um caixão. E ter a minha mãe aqui em casa e vê-la assim depois foi muito complicado. Porque achava impossível algum dia ver a minha mãe dentro de um caixão. No fundo, nem é bem o medo, é pena de deixar as pessoas.
Lux – O que sentiu quando o médico lhe deu este diagnóstico de cancro da mama?
M.P. – Eu pensava que tinha uma íngua na zona da mama e já andava com isto há muito tempo. De vez em quando, doía-me e quando palpava sentia uns caroços… Houve um dia em que fui ao hospital, a uma consulta de dermatologia, mas para tratar de um sinal, que tinha perto da vista esquerda, e que me incomodava. Não falei dos caroços, nem da dor que sentia nas axilas e na mama. Porém, a doutora, depois de tratar do sinal, perguntou-me se tinha mais alguma coisa para mostrar, já que estávamos ali. E acabei por mostrar-lhe. Assim que olhou e palpou viu logo que tinha ali um grande berbicacho. Perguntou-me porque é que eu tinha deixado isto adiantar-se tanto e eu disse que nunca me passou pela cabeça que pudesse ter o mesmo problema com que a minha irmã morreu. Mandou-me logo fazer biopsia, análises, exames…
Lux – Acha que deixou evoluir tanto por medo?
M.P. – Eu não queria ouvir a palavra cancro mais uma vez. Na primeira vez, foi tudo muito rápido. Deu-me uma dor numa perna e assim que fui ao médico, ele diagnosticou-me e fui logo operado. Abriram-me e tiraram-me um tumor do tamanho de uma laranja. Desta vez, não queria voltar a ouvir o mesmo. Porém, sabia que isto eram sintomas de cancro, os caroços, o líquido que saía do mamilo, a dor que sentia ao dormir para o lado direito… Eu sabia que não era bom sinal, mas tinha medo de ouvir a palavra cancro e foi por isso que deixei andar. Por isso é que digo que ao mais pequeno sinal estranho que sintam, vão logo fazer o rastreio e os exames.
Lux – O Marco Paulo é visto como um exemplo de perseverança e força na luta contra o cancro. É importante ter um papel e uma voz ativa neste tema?
M.P. – Sim, é. Usar o reconhecimento para ter a possibilidade de falar é muito importante para mim. Porque as pessoas não estão esclarecidas. As senhoras têm desde jovens essa preocupação com o problema da mama, mas os homens preocupam-se, a partir de uma certa idade, com a próstata. O cancro da mama nos homens não é tão divulgado, nem tão conhecido. Então, esta possibilidade
de poder alertar e fazer este papel de mensageiro a propósito de um problema de saúde que é muito grave, é muito importante para mim. O diagnóstico nos homens é mais tardio, porque eles não estão tão atentos aos sinais. Fui convidado para ser padrinho de uma associação que olha muito para o problema do cancro da mama no homem. Aceitei esse desafio para alertar os homens para uma situação que pode ser mortal. Eu próprio, ao estar sem dizer nada e a tentar ignorar os sintomas e a não tomar uma atitude, estava a preparar a cama para me deitar. Porque se não tivesse sido feito nada naquela altura, possivelmente não estaria aqui a falar consigo, porque me armei em parvo. Já tinha tido um cancro, tive o problema do rim, o início de AVC e deixo passar um sinal que me foi dado? Porque recebi sempre sinais. De quem, não sei. De onde, não sei. Mas sei que nos problemas mais graves da minha vida, fui sempre avisado. Desta vez, foi preciso ter um sinal perto da vista para descobrir o que realmente tinha. Sei que há qualquer coisa, não sei se a minha devoção a Deus e a Nossa Senhora, se a minha fé… ou se é a estrelinha que tenho no céu, a minha mãe, a olhar por mim.
Lux – Nunca questionou a sua fé durante estes processos? Nunca se perguntou porquê a mim?
M.P. – Questionei porquê a mim, mas nunca questionei a minha fé. A primeira coisa que fiz foi ir à capelinha, a Fátima. Lá, sinto-me confortado, em paz. Nunca vou lá pedir, vou sempre agradecer. E se tiver de pedir, é pelos outros. Faço os tratamentos durante o tempo que for necessário, e quando regresso à normalidade, a primeira coisa que faço é ir agradecer a Nossa Senhora e a Jesus Cristo, pelo facto de depois da tormenta ter vindo a bonança.
Lux – Começou a dar mais valor à vida? Levou-o a traçar prioridades?
M.P. – Para mim, é muito importante aproveitar a vida, porque já estive mais para lá do que para cá. E gosto da vida e de viver, gosto de cantar, de ouvir as pessoas… As minhas vitórias levaram-me a aproximar ainda mais das pessoas, as mais indefesas, as pessoas de idade, as crianças… Gosto muito de lhes dar atenção. Porque, às vezes, isso passava-me ao lado. Não sei, talvez pensasse que ser cantor era muito importante… E não é, porque pode acabar tudo num segundo e o que hoje é amanhã pode já não ser e temos de estar preparados, porque não podemos viver sozinhos. Devemos estar sempre com as pessoas e não olhar para elas nem pela idade nem pela condição social. Olhar para elas como participantes da nossa vida, partilhar o nosso gosto por viver.
Lux – Terminados os tratamentos, como se sente?
M.P. – Agora já acabei quer a quimio quer a radioterapia e só vou ao hospital fazer exames de rotina. Mas esta é uma doença muito complicada. E quando, infelizmente, estou no hospital, e espero não ter de voltar a estar, assisto ao sofrimento das pessoas, à angústia, à tristeza, independentemente da idade, porque veem-se pessoas de todas as idades.
Lux – É um processo muito solitário?
M.P. – Sim, e só quem está no hospital e passa por isso é que sabe. No entanto, nesta última operação aconteceu algo extraordinário. Fui operado no dia do meu aniversário, a 21 de janeiro, porque quis ser operado o mais rapidamente possível. E quando estava no quarto, depois do recobro, entra a equipa médica com um bolo a cantar os “Parabéns”. Foi tão bonito e atencioso e gratificante. Estou-lhes eternamente agradecido por não deixarem que a minha memória daquele dia fosse só uma operação a um cancro.
Lux – É uma pessoa muito acarinhada. É importante esse reconhecimento?
M.P. – Senti-me sempre amado pelos portugueses, pelas minhas fãs. Quando estou doente elas também estão e quando estou feliz elas estão felizes. Deixo-as participar na minha vida, deixo-as telefonar-me. Preocupo-me com elas. Às vezes, basta dar atenção a uma pessoa para ela ficar feliz. E quando me dizem que faço parte da vida delas, é lindo.
Lux – É nostálgico?
M.P. – Não. Há recordações, lembranças… É uma vida preenchida, e vai ser contada em televisão, para que as pessoas possam conhecer a história da minha vida, desde criança até à data, e se apercebam que a minha vida não foi assim tão fácil. Houve muitas peripécias, muitas oportunidades também. Mas sobretudo muitos momentos em que poderia não estar cá, por tudo o que me aconteceu em criança. Fui sempre muito mimado pelos meus pais, que me davam conselhos, me abriam a estrada para poder caminhar, me avisavam sobre a profissão que ia abraçar. A minha mãe era vaidosa comigo, porque comecei a cantar muito novo e era um jovem bonito, com bom ar, e ela gostava muito de me ouvir cantar. Era sempre a primeira pessoa a ouvir os meus discos. A minha mãe só assistiu a dois concertos meus, um no Algarve e outro no Barreiro, porque o meu pai dizia “olha o coração da tua mãe”, sempre no sentido de protegê-la. Porém, quando me ouvia cantar ficava a olhar com aquele olhar embevecido e chorava sempre… disso tenho saudades. Se há nostalgia é isso. O olhar de uma mãe é sempre o melhor, porque é o olhar da ternura e do verdadeiro amor. E a minha mãe era uma senhora de 80 anos que olhava para mim como se eu continuasse uma criança.
Lux – Que peripécias de criança são essas de que fala?
M.P. – Tinha uns 5 anos quando caí a um poço e a minha mãe é que me salvou. E outra vez, no verão, estava a minha mãe a lavar num tanque, e eu estava com ela e escorreguei nos lismos e caí dentro de água. Só me lembro da minha mãe a saltar lá para dentro e das saias dela no ar. [risos] E outra vez fui eu que salvei o meu irmão mais novo, que também caiu num poço... Sempre protegi muito esse meu irmão, andava com ele para todo o lado. Tirando o meu pai e a minha mãe, claro, fui sempre a pessoa que tinha os maiores cuidados com o meu irmão Alfredo. Temos uma diferença de quatro anos e eu tinha sempre medo que ele caísse, que se magoasse, que chorasse… porque ele era tão pequenino e tão inocente que achava que tinha de estar sempre a tomar conta dele e na retaguarda.
Lux – Isso é muito paternal…
M.P. – É. Por isso é que, mais tarde, com o meu afilhado, o Marco António, também tinha os maiores cuidados. Enquanto ele não chegasse a casa eu não descansava. Sempre tive esses cuidados e como não fui pai, na época em que podia ter sido, desenvolvi esse sentido de paternidade que na verdade já vinha do meu irmão e ficou mais forte com o meu afilhado. Projetei neles o pai que poderia ter sido. Protetor, cuidadoso…
Lux – Sente que lhe faltou isso para ser mais feliz?
M.P. – Se me perguntasse se faria tudo de novo? Faria. Mas ainda bem que o Marco António veio superar isso, senão, se calhar hoje diria que gostava de ter tido um filho ou uma filha. Na altura em que poderia ter acontecido não aconteceu, o tempo foi passando. E habituei-me muito a estar no meu espaço. Só que o meu afilhado será sempre muito especial, o filho que não tive e depois de a minha mãe ter desaparecido vai ser sempre ele o amor da minha vida.
Lux – Com tudo o que passou, deixar de cantar foi um dos seus maiores medos?
M.P. – Sim, perguntei-me se voltaria a cantar para as pessoas que fizeram de mim quem sou. Eu só existo porque as pessoas quiseram. Só gravo os meus discos até as pessoas quererem e como ainda não me viraram as costas também não quero virar as costas a quem me tratou sempre bem. Porém, vai ser muito difícil quando tiver de acontecer. Nada na vida dura para sempre e tenho-me preparado para depois não ter um choque. As pessoas mandam-me mensagens lindas e estão sempre a torcer por mim e a apoiar-me. Tenho uma família de sangue, dois irmãos e sobrinhos, e uma família que não é de sangue, mas é como se fosse, que são os meus compadres, a minha Laurinda, que são indispensáveis para mim, que estão sempre na hora certa. E claro, o meu afilhado, que nem vale a pena estar com grandes adjetivos, e que fala todos os dias comigo. Depois, tenho uma família que é do tamanho do mundo, que são os portugueses e as minhas fãs e que estão sempre presentes. Vão fazer um programa só com as minhas fãs, em que elas vão poder falar abertamente do que me costumam dizer e demonstrar que, ao fim destes anos todos, têm um artista e um amigo, porque eu faço parte da vida delas. Namoraram, casaram, tiveram filhos, sempre a ouvir-me. E isso é muito gratificante, por isso é que vou ter dificuldade em virar as costas a quem me pôs aqui e me tratou tão bem. Deixar de cantar será muito difícil, e é aí que se desenrola depois o filme da nossa vida, porque fica ali um vazio. E esta pandemia que nos afetou veio mostrar-me um bocadinho o que será quando um dia deixar de cantar.
Lux – Que projetos se seguem?
M.P. – Agora tenho a gravação de um EP com quatro a cinco músicas e queria lançá-lo no dia do meu aniversário. Vamos ver se dá tempo. Cancelámos alguns concertos este ano e, se tudo correr bem, irei fazê-los em 2021. Os reagendados e novos que possam surgir. Depois, tenho projetos em novelas. Cerca de 15 dias depois de ter sido operado, estava a gravar umas cenas da “Terra Brava”, onde fazia de Marco Paulo, porque a Prazeres, a personagem da Noémia Costa, é minha grande fã. Fiz uma participação em “Bem-Vindos a Beirais” e “Golpe de Sorte” e haverá uma participação na nova novela da SIC, “Amor Amor”. Ainda estou na expectativa de saber que papel me está destinado. Gosto muito destas participações nas novelas. Quando participei em “Terra Brava”, tinha saído há poucos dias do hospital e ainda tinha dores, quer no braço direito, quer na mama, mas quando comecei a gravar esqueci-me de tudo. Gosto muito.
Lux – Com uma vida tão cheia, do que sente mais falta?
M.P. – Da minha mãe. De falar com ela. É uma saudade eterna. E sei que, às vezes, estou no palco e sinto que a minha mãe me está a ajudar. Sinto na minha voz que ela está lá. Quando preciso de algo, consigo perceber a mudança. Por isso é que digo que tenho duas mães. A Isabel, que me fez nascer, e a Nossa Senhora de Fátima. E ou uma ou outra sei que estão presentes e me estão a proteger sempre, senão eu já não estava aqui. Sei que me iluminam. Eu tenho estes problemas, mas depois é como uma flor que renasce outra vez e elas estão sempre lá para me ajudar.