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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'Lisboa, menino e moço'
Tiago Salazar
Redação Lux em 18 de Junho de 2020 às 10:00

LISBOA, MENINO E MOÇO por Tiago Salazar

Vim ao mundo na Clínica de S. Gabriel, em Arroios, às 04h20, do dia 21 de fevereiro, de 1972. A minha mãe, então uma jovem de 19 anos, no momento do parto berrou e insultou as parteiras, a quem chamou de cabras e putas para aliviar a tensão das entranhas abertas e da passagem lenta da cachola deste vosso escriba. Nasci cabeludo, cabeçudo como um pepino, mas depressa fiquei careca e assim estive, reboludo, bochechudo e calvo, durante um ano.

Dizem que era uma criança bem-disposta, daquelas que comem tudo e dão noites tranquilas. Na clínica, deram-me a cama 15E e quase ficava Joaquim José (Quinzé) no lugar de ornar um nome bíblico. Cresci entre os bairros da Graça e Alvalade, de colo em colo, de avós paternos e avó materna. O meu pai foi para a Guerra do Ultramar logo a seguir ao meu nascimento e só o vi uma vez até ao pós-25 de Abril, quando já passava dos 2 anos. Quando voltou para casa tinha por hábito ir acordá-lo e, um dia, por não ter retorno lúdico, decidi arrancar-lhe os olhos com uma colher. Andámos de casa em casa, até voltarmos a Alvalade e o patriarca sair de casa para sempre. Alvalade foi o meu primeiro bairro. Ali fiz o tirocínio das artes da guerra que são as de crescer na rua, entre uma rapaziada danada da breca e ciganada dos bairros periféricos de Chelas, Cambodja e Vietname.

Nos primórdios da adolescência, comecei a visitar a aldeia cigana ao cimo da Avenida dos EUA, por curiosidade antropológica. Queria ser adoptado pelo rei dos ciganos e tardava em voltar a casa, deixando-
-me estar até anoitecer deitado à etrusca nos tapetes da família Lelo que vivia de expedientes de feira e outros, dos quais não me apercebi ao certo, mas deviam ser marginais. Mais tarde, vim a saber que eram contrabandistas e traficantes de haxixe e isso explicava os carros de luxo e os molares doirados. Havia sempre guitarras, dança, cantos e lamentos, gataria e vira-latas e um vozear roufenho. Chamavam-me o ‘russo de má-pelo’ e acolhiam-me como um dos seus, mal sabendo que Salazar era de origem romani.

Um dia contei-lhes do meu negócio de venda de pinheiros e musgo à sorrelfa, correndo o risco ingénuo de ser chinado, não fora andar a larapiar alguém da família. Riram-se e disseram-me que fazia bem, pois os outros Lelo mereciam. Era uma espécie de rivalidade entre Montecchio e Capuleto. Cresci entre ciganos, que são homens de Roma que também é Amor. Os nomes eram todos calés e calós seguidos de qualquer coisa. Ouvir Paco de Lucía ou Camarón de la Isla devolve-me sempre ao tempo desses ciganos ibéricos, livres e patifes.

Tenho uma cicatriz na palma da mão esquerda feita no largo do Pote de Água por um Capuleto, o Joca. Era um cigano reles tresmalhado, de casa posta e com a mania das facas. Esfaqueou-me à má fila, como dizem fazer os ciganos, quando me aproximei dele para lhe dizer com polimento põe-te a andar daqui para fora, antes que te corra mal a vida. O Joca era um bardamerdas e de mão a sangrar e tendão à vista ainda tive o sangue-frio de lhe dar um uppercut nos queixos que lhe pôs metade da língua de fora.
Nunca fui de comprar brigas e só tenho mais cinco cicatrizes e meia dúzia de ossos calcinados por fracturas de adolescência, por ser um tanto ou quanto para o mexido.

Há uma história memorável onde se prova como o preconceito é falível. Jogava à bola com o Nelson Badocha quando vimos os chonés, a família de ciganos mais temida das redondezas, de quem se dizia terem enforcado um tipo mau de contas nas matas da Avenida do Brasil. Demos à sola para as traseiras da Rua Leite Vasconcelos e procurámos refúgio no telheiro de uma garagem. Disse ao Nelson Badocha para estar calado e não se mexer muito, não fosse o telheiro ruir. O Nelson deu então um passo em falso e enfiou-se por um telhado de vidro indo aterrar como um porco exangue em cima do capot de um Ford Mustang. O berreiro era tal que os chonés deram connosco num ápice e assim se deu uma operação de resgate inaudita. Eu e mais cinco chonés tirámos o Nelson Badocha do seu ribeiro de sangue, desmaiado e com a perna aberta de alto a baixo. Apertei-lhe a perna com uma toalha roubada de um estendal, levantámo-lo ao alto como um marajá e fomos, eu e mais uma horda de ciganos danados, até ao Hospital de Santa Maria para coserem o meu amigo esventrado.

(Crónica publicada na Lux 1050 de 15 de junho)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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