"SPORTING CLUBE DE PORTUGAL" por Tiago Salazar
Avô e pai Gomes, adeptos do Sporting, trouxeram-me, por ADN, a paixão leonina. Tenho bem presente o baptismo no velho Estádio José Alvalade. Era uma tarde ensolarada e lá fomos, eu, pai e avô (das poucas vezes que nos recordo juntos) assistir a uma partida do campeonato. Vi-me fascinado com o espectáculo ao vivo, embora me lembre de ter passado mais tempo ocupado a comer queijadas e a emborcar sumóis de ananás. Ganhámos o jogo e por cada golo (uma cabazada) vi-me içado como um papagaio de papel entre leões em êxtase. A emoção do golo tem a sua razão de ser na explicação para a irracionalidade do clubismo.
No Pote de Água eram todos do Benfica e não escapava à acrimónia de ser chamado de lagarto. Leão ou lagarto, todos se davam bem ao sol, tal como eu, equipado de verde e branco, a torrar de bola a rodopiar da cabeça aos pés. Ajeitava-me a dar toques na chincha, fosse esta de cautchu ou feita de trapos. Embora meão, tinha a facilidade de passar onde os maiores do que eu trocavam as pernas e daqui me nasceu a adoração por Maradona e Messi. Era titular do Hockey, o clube campeão do bairro, quando fui aos treinos de Alvalade a conselho do mister, que me achava capaz de aspirar a uma carreira de médio ala, assim ganhasse disciplina. Fiz a Avenida do Brasil em passo de corrida, a simular gingas e fintas e a imaginar-me o sexto violino. Cheguei ao treino e vi-me num relvado macio e aparado, depois de duas épocas a esfolar as pernas e os joelhos em campos pelados. Dei por mim rodeado de maduros com pêlos e músculos, duvidando de ser aquela a captação dos infantis. Os minutos passavam e todo eu fervia, entesado de ímpetos juvenis para mostrar a minha raça. Imitava os gestos dos que aqueciam e seguia atento às movimentações de cada jogador. Um deles sobressaía, pela postura de craque, a habilidade em conservar a bola, driblar e distribuir jogo. Mais tarde vim a saber dar pelo nome de Luís Figo. Aprendi depressa, ao ver o bailado, que entre um jogador e um cavalo de competição a diferença é pouca. Chegou a hora de entrar, e no espaço de dez minutos, apontei dois golos de tirar o chapéu, um de calcanhar e outro, um petardo de fora da área ao ângulo que levou ao aplauso da geral.
No fim do treino, o mister veio ter comigo e disse: “Podes voltar amanhã. Vamos ver se foi sorte de principiante.” Como tudo o que tem que ser tem muita força, não cheguei a aquecer o banco e fui morar para o Estoril passados curtos meses. Às vezes, pergunto-me se tivesse ido mais além, aplicando-me com afinco na incógnita de uma vida de futebolista. No Estoril, troquei o futebol pelos fairways do golfe, fazendo dos swings e da luta de derrotar os campos uma nova paixão. Demasiado exigente e ansioso por singrar, não fui além de um handicap zero, uns troféus amadores e campeonatos do clube e uma disputa memorável de match play na Carregueira (Lisbon’s) com o António Castelo, o jogador do momento, que guardo até hoje como o melhor dia de golfe da minha vida. Um match disputado taco a taco, até ao último buraco, onde perdi por um, como quem sofre um golo no derradeiro segundo.
Continuei a ir à bola com pai e mãe (à vez), para a superior Norte e os camarotes. As bocas de que o Sporting é clube de betos e queques fazem tanto sentido em Alvalade como no Chelsea, mas dá-me um certo gozo poder sentar o rabo numa cadeira VIP a fumar um Siglo V e olhar os ares e ver um gineceu digno da mais bela galeria, para compensar as tristezas no relvado e as grandes vitórias adiadas. Allison foi o treinador que mais me encheu as medidas, e Futre e Figo os jogadores mais espantosos que vi em acção. Prefiro lembrar-me dos tempos em que ainda não olhava para o futebol como o reino do deboche, da promiscuidade, da mercearia, da corrupção e da valsa dos cifrões. Ainda não pensava porque não se taxavam os clubes consoante as suas bilheteiras e receitas opulentas ou se faziam lares, creches e lugares de assistência social onde os adeptos carentes de tigelas de sopa e pão pudessem passar os seus dias condignamente. Assim como quem faz igrejas lá para os lados da Luz, por exemplo. É por estas e por outras que beleza no mundo da bola é lembrar as fintas do Fanã e os dribles do Zé Canina nos tempos gloriosos do Hockey. Ou um Américo no golfe.
(Crónica publicada na Lux 1059 de 17 de agosto)