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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'Sporting Clube de Portugal'
Tiago Salazar
Redação Lux em 20 de Agosto de 2020 às 10:00

"SPORTING CLUBE DE PORTUGAL" por Tiago Salazar

Avô e pai Gomes, adeptos do Sporting, trouxeram-me, por ADN, a paixão leonina. Tenho bem presente o baptismo no velho Estádio José Alvalade. Era uma tarde ensolarada e lá fomos, eu, pai e avô (das poucas vezes que nos recordo juntos) assistir a uma partida do campeonato. Vi-me fascinado com o espectáculo ao vivo, embora me lembre de ter passado mais tempo ocupado a comer queijadas e a emborcar sumóis de ananás. Ganhámos o jogo e por cada golo (uma cabazada) vi-me içado como um papagaio de papel entre leões em êxtase. A emoção do golo tem a sua razão de ser na explicação para a irracionalidade do clubismo.

No Pote de Água eram todos do Benfica e não escapava à acrimónia de ser chamado de lagarto. Leão ou lagarto, todos se davam bem ao sol, tal como eu, equipado de verde e branco, a torrar de bola a rodopiar da cabeça aos pés. Ajeitava-me a dar toques na chincha, fosse esta de cautchu ou feita de trapos. Embora meão, tinha a facilidade de passar onde os maiores do que eu trocavam as pernas e daqui me nasceu a adoração por Maradona e Messi. Era titular do Hockey, o clube campeão do bairro, quando fui aos treinos de Alvalade a conselho do mister, que me achava capaz de aspirar a uma carreira de médio ala, assim ganhasse disciplina. Fiz a Avenida do Brasil em passo de corrida, a simular gingas e fintas e a imaginar-me o sexto violino. Cheguei ao treino e vi-me num relvado macio e aparado, depois de duas épocas a esfolar as pernas e os joelhos em campos pelados. Dei por mim rodeado de maduros com pêlos e músculos, duvidando de ser aquela a captação dos infantis. Os minutos passavam e todo eu fervia, entesado de ímpetos juvenis para mostrar a minha raça. Imitava os gestos dos que aqueciam e seguia atento às movimentações de cada jogador. Um deles sobressaía, pela postura de craque, a habilidade em conservar a bola, driblar e distribuir jogo. Mais tarde vim a saber dar pelo nome de Luís Figo. Aprendi depressa, ao ver o bailado, que entre um jogador e um cavalo de competição a diferença é pouca. Chegou a hora de entrar, e no espaço de dez minutos, apontei dois golos de tirar o chapéu, um de calcanhar e outro, um petardo de fora da área ao ângulo que levou ao aplauso da geral.

No fim do treino, o mister veio ter comigo e disse: “Podes voltar amanhã. Vamos ver se foi sorte de principiante.” Como tudo o que tem que ser tem muita força, não cheguei a aquecer o banco e fui morar para o Estoril passados curtos meses. Às vezes, pergunto-me se tivesse ido mais além, aplicando-me com afinco na incógnita de uma vida de futebolista. No Estoril, troquei o futebol pelos fairways do golfe, fazendo dos swings e da luta de derrotar os campos uma nova paixão. Demasiado exigente e ansioso por singrar, não fui além de um handicap zero, uns troféus amadores e campeonatos do clube e uma disputa memorável de match play na Carregueira (Lisbon’s) com o António Castelo, o jogador do momento, que guardo até hoje como o melhor dia de golfe da minha vida. Um match disputado taco a taco, até ao último buraco, onde perdi por um, como quem sofre um golo no derradeiro segundo.  

Continuei a ir à bola com pai e mãe (à vez), para a superior Norte e os camarotes. As bocas de que o Sporting é clube de betos e queques fazem tanto sentido em Alvalade como no Chelsea, mas dá-me um certo gozo poder sentar o rabo numa cadeira VIP a fumar um Siglo V e olhar os ares e ver um gineceu digno da mais bela galeria, para compensar as tristezas no relvado e as grandes vitórias adiadas. Allison foi o treinador que mais me encheu as medidas, e Futre e Figo os jogadores mais espantosos que vi em acção. Prefiro lembrar-me dos tempos em que ainda não olhava para o futebol como o reino do deboche, da promiscuidade, da mercearia, da corrupção e da valsa dos cifrões. Ainda não pensava porque não se taxavam os clubes consoante as suas bilheteiras e receitas opulentas ou se faziam lares, creches e lugares de assistência social onde os adeptos carentes de tigelas de sopa e pão pudessem passar os seus dias condignamente. Assim como quem faz igrejas lá para os lados da Luz, por exemplo. É por estas e por outras que beleza no mundo da bola é lembrar as fintas do Fanã e os dribles do Zé Canina nos tempos gloriosos do Hockey. Ou um Américo no golfe.

 

(Crónica publicada na Lux 1059 de 17 de agosto)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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