O amor IX e O amor X por Tiago Salazar
O amor IX
Na luta de classes do matrimónio com ou sem papel assinado, a façanha mais comum é a do primado do ego: eu sou melhor pessoa do que tu, diz um em alta voz e pensa o outro, quando lhe é comunicada a presunção. Estar nesta fase de cotovelada é estar já numa fase adiantada de encarquilhamento espiritual, quando os corpos no lugar de se aconchegarem em abraços (não apenas genitais) se chocam e repelem como bolhas de bilhar. A virtude seria não nos colocarmos a nós mesmos em primeiro lugar, mas estarmos o mais possível atentos à necessidade do outro. Se formos pela via da ciência diremos que o gene egoísta quer protagonismo, quer ser o primeiro, quer estar à frente, quer dominar, possuir, escravizar e chacinar. Se optarmos pela religião, e sendo esta parte do mundo de matriz cristã, o que Jesus veio fazer foi trocar as voltas ao ego, manietando-o através do amor. Se esta parte final for comunicada ao outro (pela voz do Outro) e sem ponta de orgulho e vaidade e ignorância, o outro dirá “lá está o vendedor de Bíblias”. O cerne é que nenhum amor é Amor quando o dedo se espeta inflamado com a voz da razão.
O amor X
Tenho quilómetros nas pernas, idade meio avançada, mas do amor pouco ou nada sei. Sei de sentir apenas o seguinte, e também cabe na amizade: o amor não se ufana nem ensoberbece… lido na Bíblia, legível e sentido. Neste sentido cabem os pedidos de desculpas, vitais à boa saúde dos laços. Se magoamos, e podemos magoar com palavras, actos e omissões (como diz a Bíblia), o caminho inverso é reparar o dano, nem que seja pedindo desculpa. Reiterar na luta é como querer provar da superioridade moral, como no ringue se afirma a força física. Mesmo no ringue, porém, há regras ou se atira a toalha ao tapete se esgotamos as forças. Neste caso do amor, o autor do K.O. nunca será o vencedor, ok. Isto porque o amor não mede forças. O amor une e alia para enfrentar todas as vicissitudes. Um dia, acontece a falha. Uma palavra azeda. Uma provocação boçal. Uma bestialidade oriunda das cavernas. Um acto de vingança ou de ajuste de contas, por conta das contas mal feitas. Nesse dia, como no que nascido torto, tarde ou nunca se endireita, o caldo entorna e se está a ferver queima, ou se está frio, derrama-se. Começa a guerra e a sucessão de batalhas até ao dia do armistício (divórcio). Na melhor das hipóteses, baixam-se as guardas, embainham-se as espadas, selam-se pactos e a vida continua, numa paz podre ou num caso remoto, iluminada pela luz mansa da compaixão.
(Crónica publicada na revista Lux 1068 de 19 de outubro)