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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'Salazar & Gomes'
Tiago Salazar
Redação Lux em 23 de Julho de 2020 às 10:00

SALAZAR & GOMES por Tiago Salazar

Aos dois anos a memória, se a houvesse, nítida e verosímil, seria de papas Maizena, gemadas de quatro ovos, beijos de esquimó da avó Vessadas e a frota de carros do meu avô Gomes, um dos lesados da Revolução. O apelido Salazar poderá indiciar “bué de equívocos”, como me disse um dia a escritora Luísa Costa Gomes. Pode dar jeito e dar logo azo a repulsa, como se os acareados estivessem diante de um fascista leproso. O Salazar, que é apelido de ciganos espanhóis, e mais tarde de mercenários leoneses e leoninos ao serviço d’El Rei D. João I, então Mestre de Avis, que por aí ficaram por conta de terras ganhas pelos feitos fratricidas em Aljubarrota, foi ficando até se ramificar nos Oliveiras, Campos e muitos outros cujas biografias merecerão o devido rigor que não me cabe a mim discretear (para isso há sempre um primo genealogista).

O 25 de Abril chegou e eu estava, ao que parece, em casa dos avós Gomes, mais tarde tomados por partidários do antigo regime só por terem feito dinheiro com trabalho honrado. A história que sempre ouvi contar foi de lhes terem sido abafadas acções valiosas e de nunca, até hoje, terem sido ressarcidos os descendentes. A origem das cóleras bíblicas do lado Gomes poderá estar aí, nessa filha putice equiparada às histórias da banca dos nossos dias, que salvaguarda os maiorais, os das 25 famílias de poderosos, que mandam nesta merda toda, e deixa os que fazem pela vida, com mais ou menos sucesso, à sua mercê. O avô (Fernando Machado) Gomes nunca recuperou do chimbalau e viveu amargo e recolhido, até morrer de enfarte nos Capuchos. Refugiava-se no vinho, na comida, no Fiat 500 e no neto Tiago, com a sua ternura infinita. Devo ter passado o 25 de Abril de volta das grandes orelhas e mãos papudas do avô Gomes, sentado ao seu colo na poltrona de couro coçado da Rua Leite Vasconcelos a olhar pasmado para os Budas anafados de porcelona a rirem-se em cima do psiché. Imagino o avô a embalar-me à frente do televisor recolhido nos seus pensamentos, sem vociferar, sem apregoar nada, pois se fosse para tratar da saúde de algum facínora, o mais certo era sair discreto, pôr o seu chapéu de feltro, e ir aviá-lo, para voltar a casa de fato impecável como se nada se tivesse passado. Todos os dias 25 de Abril, o avô Gomes, que nunca foi fascista nem comunista nem politizado, e que os achava a todos uns palhaços cheios de si, ia passear comigo. Íamos só os dois, comer frangos assados à Praça do Chile e lavar o Fiat nas máquinas de lavar onde um dia me borrei todo achando estar a ser engolido por um brontossauro metálico. O avô foi-se cedo de mais. Foi-se consumido pelos desgostos. Foi-se, porém, de integridade e coragem intocadas. A revolução para ele, que sofrera a morte de uma primeira mulher e de um filho recém-nascido fruto de uma história de amor proibido, estava em ser um chefe de família, um patriarca, um exemplo de nobreza de valores e sentimentos.

(Crónica publicada na Lux 1055 de 20 de julho)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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