PUB
PUB
Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'O amor I' e 'O amor II'
Tiago Salazar
Redação Lux em 24 de Setembro de 2020 às 10:00

'O amor I' e 'O amor II' por Tiago Salazar

O amor I

A grandeza do indivíduo onde está? Os grandes, os eleitos (chamemos-lhes divinos), os escolhidos, os iniciados, os Cristos, os Budas, não se auto elegem, auto promovem, auto brindam e auto galvanizam, como pode ser a escrita ou qualquer arte vendida e mostrada. Ao virmos aqui ou acolá perorar sobre o tema A a Z, ao validarmos com a expectativa da aprovação (sempre hipersensíveis ao apodo ou ao apito) podemos não estar a passar mais do que uma ideia narcísica. Acredito na escrita automática tanto quanto ela me dá de instintiva, mas a escrita é sempre emenda e revisão, tal como o amor é sempre tentativa e erro. Ao mesmo tempo, se toda a criação fosse apenas resultado de impulsos estaríamos mais depressa em construção ou destruição? Ainda que o amor não acabe, ainda que doído pela gravidade da confiança sofrida, nunca nada será como antes, como no tempo de todas as coisas possíveis, podendo no entanto e por paradoxo ser muito mais Amor, muito mais próximo do Divino, onde cabe apenas a compaixão.

O amor II
Pode salvar-se um amor ferido, uma amizade combalida? Pode salvar-se como se salva um moribundo, cauterizando-lhe as feridas, dando-lhe o antídoto certo? Há que ir às razões mais fundas dos ferimentos e, seres do ego, todos somos cheios de razões superficiais, como a desculpa da dor pode ser um imenso laboratório para o mal.

Na nossa imensidão corriqueira todos queremos dizer alto-e-bom-som que nisto do amor, ao menos nisto, somos craques, imaculados, inatacáveis. Diante da legião que nos ampara queremos ser louvados por termos a folha de serviços impecável. Entre tentar a proeza do amor sério e duradouro e ceder às tentações de amores de passagem há um fosso de equilibrista. Pode viver-se uma vida em queda livre, aos loopings e cambalhotas e só se saber do embate no dia do dobre de finados. Há os capazes de viver sem sair da rotunda, rodopiando, girando, no equívoco mais belo da Criação, o da ascese pela espiral.

Na eterna busca do soneto do amor perfeito, juntam-se a fundura maternal de beltrana com a tesão fogosa de sicrana e emparelham-se os corpos em duetos, sonatas, allegros vivaces… como quem compõe estrofes, sabendo de antemão que um dia chegará a hora dos adágios e de ser tocada a pauta de Mendelson.

As mulheres que dizem precisar de homens para a sua própria compreensão e entendimento do dom do altruísmo não são as que mais amam e chegam a amar de mais, mas talvez sejam as mais dotadas para saber amar. Aos homens, entre homens, ou em qualquer combinação, aplica-se o mesmo princípio, sem nenhum fim de final feliz à vista.

O lugar-comum do amor de pacotilha é ditar a ruína de todo o grande amor por conta dos eclipses da tesão madura, onde todas as coisas são possíveis. Saber onde está a dose certa e quem é para nós, é resultado de uma observação paciente e de uma aceitação, mas o fenómeno da paixão só acontece nos intervalos da irracionalidade pura e o final que nunca é feliz, é também sempre acolhido por enigma.

(Crónica publicada na Lux 1064 de 21 de setembro de 2020)

 

Não perca a sua Lux, já nas bancas!

Mantenha-se ligado à Lux! Juntos somos mais fortes!

Saiba como assinar a revista Lux em papel ou em formato digital:

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
Comentários

PUB
pub
PUB
Outros títulos desta secção