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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'Sorrisos'
Tiago Salazar
Redação Lux em 27 de Agosto de 2020 às 10:00

SORRISOS  por Tiago Salazar

O sorriso budista é uma imagem de marca universal, como o falo (em pedra) do Cristiano Ronaldo deposto na ilha da Madeira, os rebuçados de funcho, ou o sex appeal do nosso enxofrável presidente Marcelo. No Japão, o budismo e o xintoísmo são as religiões dominantes, não havendo quase expressão de outro credo ou religião. Se o facto dos templos e altares onde ecoam os mantras, sutras e invocações de um Buda imaculado e sem auto-comprazimento na dor ditam ou não o carácter de um povo, creio não haver ciência que o determine. Facto inegável são os sorrisos dóceis em todos os sentidos da rosa-dos-ventos, acompanhados de uma palavra sempre suave e ciciada, que fazem da cara alegre dos japoneses para onde quer que se caminhe uma bênção do encontro. Sorriem e fazem uma vénia a pretexto de qualquer comunicação, sejam camponeses ou executivos apressados, como se servir (e não ser servil) fosse um imperativo diante de outro ser, seja homem ou formiga. Talvez daí se expliquem os seus olhos rasgados e as rugas de expressão. Serena as almas desconfiadas estar com gentes que sorriem, indiferentes se nos escarnecem ou gozam das nossas patéticas caras engelhadas, desconhecendo o que dizem quando viramos costas, e se riem ainda mais certamente dos nossos modos agitados e macambúzios. Sorrirão da nossa neurose de turismo sôfrego, sempre a corrermos entre um lugar e outro, sem nos determos a contemplar o que o mais certo é não voltarmos a ver, nem que seja a contemplação carinhosa da angústia de tudo, seja mau ou bom ou assim assim, ter um fim risível.
Quando nos deparamos com o belo, ainda que a ideia de belo levante natural discussão, por instantes as dores dos desatinos, sejam eles quais forem, sucumbem. Belo, para mim, foi no acaso das minhas viagens descobrir a obra de Henri d’Orléans, duc d’Aumale na província de Paris, aonde fui buscar mais elementos para uma história onde o belo é a palavra-de-ordem (a mot juste) na forma de filantropia e bondade. Na terra de Chantilly, as natas do céu, herdou o Duque o seu castelo, e recheou-o de arte, a melhor do seu tempo. Livre das vaidades, pensou-o num território dos outros, dos vindouros. A França é pátria orgulhosa e de peitos opulentos. Por exemplo, vende queijos e vinhos (por vezes, sofríveis) como quem vende feitos da sua História onde estão momentos admiráveis como a Comuna de Paris ou a Revolução. O Duque encheu a casa de arte, mas foi na sua honorável biblioteca que me fez sentir um afortunado. Fui ali movido pelos cavalos, o hipódromo e as afinidades com Ascot, e dei por mim cercado por um leitor e coleccionador omnívoro da literatura mais esmerada. As estantes não aspiraram à quilometragem do Trinity College, nem foram erguidas para servir de decoração ou levar à cobiça do Vaticano. A biblioteca do Duque é, acima de tudo, um lugar para se repousar de corpo inteiro, para então deixar o castelo e partirmos rumo à leitura. Procurar logo nessa tarde um par que seja de livros de alfarrábio, num bouquiniste do Sena, um cadeirão de leitura de veludo coçado num antiquário e inteirar o espírito de um Rabelais ou Montaigne em honra do magnânimo Duque.

(Crónica publicada na Lux 1060)

 

 
Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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