Avante, Camaradas por Tiago Salazar
Se nos víssemos como os outros nos vêem ficaríamos arrepiados, ou talvez irados, furiosos, prontos para a guerra. E vice-versa. Mas é neste vice-versa que há todo o Trabalho a fazer. Por estes dias sombrios, o PCP é “julgado” pelos seus actos públicos. É gozado pela sua festa ao arrepio da sanha do distanciamento social.
Tenho memória de um político à Lincoln, digamos assim, ou como imaginamos o pai fundador da América moderna. Chamava-se Manuel Gírio, era comunista afectivo de matriz cristã e seguidor do deus do esparguete, e nunca ocupou um cargo público notável. Foi dramaturgo e poeta mais do que tudo, como o defunto Václav Havel. Agora, nesta hora de suspense pandémico, esperamos um Messias goês, um dirigente com nome e feições e bravura de índio, um padre lírico ou um corajoso activista? Eu espero duas ou três coisas de um governo, governante ou líder, para me sentir pacificado com a ideia de nação valente, e voltar a ter esperança na ressurreição da ideia de pátria, além de me contentar com os gozos da língua e da escrita. Uma delas é simples: derrubar a ditadura mental.
Volta e meia, por norma em tempos sombrios, volta ao barulho o tema da supremacia que leva inevitavelmente ao conflito. Somos o que Somos. Humanos, de raça, dispersos e errantes por uma terra limitada, ignorantes de certezas. Nem o ser humano mais dotado de intelecto tem as respostas para o que fazemos nós aqui. A supremacia é da Natureza e cada atentado do Homem contra ela reflecte-se – segundo a lei universal de causa-efeito – em destruição. Tal como cada acto em sua defesa, respeito e protecção, origina um clima auspicioso. Falando por mim, que me eduquei e educo às minhas custas (por defeito de curiosidade) na observação das espécies (todas sem excepção), à luz da sociologia, da ciência política, da filosofia, da religião, da antropologia, da etnologia… não só me verão bater-me contra o racismo, o autoritarismo, o sectarismo e todo o caudal de exploração do homem pelo homem, como também podem esperar o seguinte: quem me insultar ou tresler leva com o tinteiro nos fagotes.
É estranho termos tão poucos laços com a Natureza, com os insectos, com a rã saltitante e com o mocho que pia por entre os outeiros, chamando a sua companheira. Nunca demonstramos ter uma certa simpatia por todos os seres vivos da Terra. Se pudéssemos estabelecer uma relação intensa com a Natureza, nunca mataríamos um animal para saciar o nosso apetite, nunca feriríamos nem dissecaríamos um macaco, um cão, uma cobaia para nosso proveito. Encontraríamos outras formas de cicatrizar as nossas feridas, curar os nossos corações.
O ser humano matou e continua a matar milhões de baleias e tudo o que obtemos desse massacre pode ser conseguido por outros meios. Mas, ao que parece, o Homem gosta de matar, gosta de matar o veado em fuga, a gazela maravilhosa e o elefante pujante. Adoramos matar-nos uns aos outros. Esta chacina humana nunca se deteve em toda a história da vida do Homem na Terra. Se conseguíssemos – e é imperativo fazê-lo – estabelecer uma relação profunda e duradoura com a Natureza, com as árvores, os arbustos, as flores, a erva e as nuvens velozes, nunca mais massacraríamos outro ser humano, por motivo algum.
Assassínio organizado é sinónimo de guerra.
Agora vou fumar um puro (cubano).
(Crónica publicada na revista Lux 1069 de 26 de outubro)