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Nacional
Lídia Jorge: casa assaltada a meia da noite
Apresentação do livro «Rio Homem» de André Gago
Redação Lux em 12 de Outubro de 2012 às 12:18
A casa da escritora Lídia Jorge foi assaltada.

A autora de «O Dia dos Prodígios», perplexa, ficou aliviada por ver que o «Sr. Ladrão» deixou o computador, as fotografias e outras velhos pertences, intocáveis.

O primeiro impulso da autora foi transmitir, pela escrita, as sensações que atravessava ao ver a casa remexida.

Foi esse texto que Lídia Jorge enviou ao blogue «Casal das letras» onde era esperada uma crónica sua.

Perante a beleza da prosa, os responsáveis pediram autorização à escritora para publicar o texto dando assim a conhecer o infeliz episódio.



«De Lídia Jorge aguardávamos uma crónica prometida pa a este espaço. Em vez disso chegou-nos «A Meio Da Noite» uma alarmante mensagem que a escritora nos autorizou a publicar.»

«MENSAGEM A MEIO DA NOITE

Queridos amigos, tanto que eu queria não vos desiludir, cumprindo a tempo e horas o que vos prometi com solenidade, mas infelizmente irei continuar em falta, e desta vez a culpa traz dupla assinatura pois não é só minha, ainda que não conheça a quem imputá-la. Confuso? Compreenderão se vos disser que ao regressar a Lisboa encontrei a casa assaltada.

Sim, meus amigos, a porta estava entreaberta, como se um estranho outro dono nos esperasse, e a fechadura não havia sido violada. Como explicar? Uma pessoa entra pela casa adiante, com a consciência perfeita do momento, o domínio sobre os maxilares, perfeito, e os músculos dos joelhos, intactos. O coração nem bate um pouco mais, prossegue o seu caminho, tiquetaque, tiquetaque, relógio orgânico habituado a muita coisa, e aí vai ele, inalterado. O coração fala consigo mesmo ¿ Ficou o computador? Ficou. Ficaram as fotografias? Ficaram. Ficou o frigorífico velho? Sim. O passa-discos, também ficou? Que bom. E também ficou o televisor. E ficou o coelhinho de chocolate que me inspirou um conto, há dois anos. E a caneta de rosca, e as rosas de sarapilheira, e o caderno encarnado. Então uma pessoa olha para o caos instalado, a dança dos objetos que andaram de um lado para outro, cruzando-se no espaço, e sente uma espécie de anestesia. Não dá para pensar, só dá para ver. Pois no rebuliço, os pechisbeques voaram para cima da cama, os recibos das finanças foram parar nos portais, as cartas dos amigos ficaram debaixo dos óculos velhos, alguns deles saíram das caixas, e na confusão, de repente, a pessoa descobre que os aros estavam mais do que ultrapassados. Há quanto tempo estariam os óculos guardados no fundo da gaveta agora vazia? Aliás, todas as gavetas estão completamente vazias, e o chão está completamente juncado. Onde colocar os pés? O que estará debaixo do monte das informações bancárias, umas vinte, que parecem ter-se multiplicado por mil? E as moedas canadianas, e os reais desprezados? Que curioso é o bater do nosso coração. Tiquetaque, tiquetaque, sem alteração alguma.»

Veja o resto do «relato» de Lídia Jorge em www.casaldasletras.com
Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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