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Crianças
Leonor... onde estiveste?
[Arquivo]
Redação Lux  com Carla Almeida em 28 de Fevereiro de 2010 às 12:08
Setembro. Um dia quente, com reflexos de um Verão demorado, ainda inteiro. Lá fora a pressa dos horários ou a demora das pausas. Cá dentro, um tempo intermédio, um hiato prolongado, sem relógios ou contornos temporais. A Leonor entra no gabinete como se viesse sem ter chegado ainda. A palavra que a envolve é Ausência. Embrulhando de forma quase opaca um pequeno universo. Um interior escondido para quem a olha sem a conseguir ver. Há pouca expressão nos seus olhos. Oscila entre a pressa de se mover sem rumo e a inércia de contemplar o vazio. Tem um rosto lindo, num corpo que ainda vacila ao ritmo dos primeiros passos, recentes. Tem 17 meses. Cedo para estar numa avaliação do desenvolvimento... Cedo para a maioria dos que a rodeavam.

No tempo certo para a mãe, que nunca viu sossegar os seus receios, que teve a certeza de que algo se passava... Que procurou os olhos da Leonor sem que nunca chegassem para repousar nos seus... A avaliação foi feita em vários dias, ao ritmo dela. Procurando os sintomas, as dificuldades, as capacidades¿ As peças de um puzzle que se vai montando e que no final, apesar de incompleto, deixa transparecer o diagnóstico que os pais temiam. A Leonor parece ter uma Perturbação do Espectro do Autismo. Não responde ao nome, não tem qualquer palavra, não tenta comunicar por gestos, não aponta, não prolonga o contacto visual, usa o corpo do adulto como instrumento, raramente devolve o sorriso, não imita acções do adulto, usa os brinquedos de forma repetitiva, girando-os ou atirando-os para o chão, tem estereotipias. É, ao que tudo indica, um caso grave. E talvez por isso esteja neste gabinete, nesta tarde de Verão, com apenas 17 meses. Não houve a demora de outros casos, que tardam mais a chegar, especialmente quando são mais ligeiros ou quando os pais prolongam a espera (ou o reconhecimento do problema). No caso da Leonor, a precocidade do diagnóstico abre portas largas para uma intervenção que cria raízes na plasticidade neuronal. Após a avaliação, define-se um rumo, estabelece-se um plano. Terapia, casa e infantário. Um triângulo perfeito para desenhar uma nova estrada para a Leonor caminhar. Divide-se a intervenção em dois momentos e dois espaços: o de brincar e o de trabalhar. Quando brinca com ela, o adulto segue-a, procura-a, interpela-a, imita-a... Canta com e para ela, divide brincadeiras, deita-se no chão, toca-lhe e persegue o seu olhar. Permite que ela escolha o rumo e coloca-se no barco com ela. Um intruso nem sempre bem-vindo, mas que gradualmente a fará sentir que a viagem é melhor com companhia. No espaço e no tempo de trabalho há uma mesa e cadeiras. Um canto em que o adulto a guia em pequenas tarefas, estruturadas, bem sequencializadas e muito visuais. As mãos da Leonor são guiadas num encaixe, numa associação de imagens, numa pintura... Promovem-se competências que são fundamentais para a sua aprendizagem. Assim se vai completando o esboço do caminho. E quando duvidamos de que ela será capaz de caminhar, ela surpreende-nos e dança! Há uma alegria que se recupera. A mãe da Leonor disse um dia que não saberia como poderia voltar a ser feliz depois daquele diagnóstico. Mas o tempo, os dias, as manhãs, as horas¿ Erguem-se, renovam-se... E com eles a perseverança. E neles as conquistas e os sorrisos. O Inverno está prestes a terminar e a Leonor aproxima-se agora dos 2 anos. Na sessão mais recente, ela entra no gabinete num dia de chuva. Lá fora há pouco mais do que cinzento e a urgência dos dias. Mas cá dentro, o tempo é sempre outro. É o tempo dela. É o tempo dos afectos, das descobertas, das lutas... Mostro-lhe os cartões, os brinquedos e as palavras começam a desabrochar como flores que a Primavera já anuncia. Estamos conscientes dos passos diários que ainda teremos de dar, mas os progressos são extraordinários. A Leonor parece chegar de algum outro lugar. E enquanto ela olha para mim, sorri e corre para o meu colo, quase me atrevo a perguntar-lhe: Leonor, onde estiveste?
Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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