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Nacional
Pote de água por Tiago Salazar: 'O amor V' e 'O amor VI'
Tiago Salazar
Redação Lux em 8 de Outubro de 2020 às 10:00

 'O amor V' e 'O amor VI' por Tiago Salazar

O amor V
Um psi(quiatra) a quem recorri em tempos de moleirinha frita disse-me com dupla propriedade - de canalizador de neurónios e avançado na idade - ser o amor, sobretudo o casamenteiro, baseado em dois motes: a luta e o negócio. Na luta pressupunha o pendor atacante do ego de cada parte envolvida se achar mais impoluto, e a partir dessa ditadura de mérito desferir os seus ataques (com azedume, censura, sarcasmo, ironia, consoante a hora e o dia). No negócio levava a pensar na ideia de contrato social além dos juramentos de lealdade e devoção vitalícias, quando uma ou ambas as partes se sentem abusadas e espezinhadas no seu contributo. O princípio mais válido seria o da justa paridade, dizia, não se podendo avaliar e pesar com rigor das benfeitorias e malfeitorias de cada parte, mas podendo cada um saber até que ponto se pode e deve entregar à causa do amor. A justa paridade não passaria de cada um dar o que tem e pode e a mais não ser obrigado. Daqui se chegaria ao muito avisado princípio de aceitar o outro (a qualidade e defeito do outro) e recapitular a cada momento como se chegou a ele. Logo nos instantes iniciais se percebem as características marcantes de cada um. Se o compramos caro, também o podemos alienar por tuta e meia, é facto, até doar e empandeirar. Podemos dizer que nos enganámos com a cegueira do primeiro impacto ou recorrer à arma do karma dizendo que se esbarrámos com o(a) imbecil foi para aprendermos qualquer coisinha para a vida seguinte. Talvez só saibamos se é Amor se a cada momento mais duro, mais penoso, o outro se vira para nós e nos ajuda, entende a nossa dor. Nos verdes dias de celebração tudo é amor, mascarado pelos hip hip hurras. Nos amargos dias da realidade quotidiana o mais dúctil dos seres pode cristalizar-se diante do pressuposto da sua razão inabalável. Um Amor só perdura na humildade recíproca, na leveza do tacto e do humor, no reconhecimento certeiro do que se é e de como se vê o outro a quem um dia se disse amar com todas as letras. Se se teima em ver no outro o diabo de mascarilha o mais certo é um dia debaixo da capa sair um punhal. Por vezes um harakiri.

O amor VI
A conjugação do pretérito perfeito com o futuro do condicional abunda entre casais de longa data (ou da velha guarda). No princípio, após o coup de foudre ou o encontro inaudito mútuo (raro) em que ambas as partes se acham complementares, todas as horas, de todos os dias, em todos os lugares, e a rodos, são boas para despir a roupa e entregar a alma ao voo das emoções primárias. Os primeiros tempos são como os bichos: há-que acasalar e depois de acasalar, acasalar mais e mais. O ritmo é como a pauta, tem tanto de alegro vivace como de adágio, sem nunca chegar ao alegro ma non tropo sem passar pelo piano e o dolce fare ciente de que um dia chegará a monotonia e até a música mais bela cansa os ouvidos. O ritual pede apenas o invento, o engenho e a arte para não afadigar mais do que os corpos cansados. Depois, já de corpos casados, já de filhos nados, instala-se o desafio do alto-mar. Creio bem ser a sabedoria e a boa comunicação a única forma de superar o tempo e reencontrar o passo quando tudo parece longe e perdido. A decisão de ficar ou partir, de procurar de novo ou deixar-se ser achado (ou vítima de achamento se estivéramos no Brasil) é um precipício onde há ramos para amortizar a queda e por debaixo um abismo. O maior amor é o amor que acena, aceita sem acatar ou atirar. As palavras, com tanto de ternas e sangrentas, podem dizer por ou nada se o outro nos acha demagogos, fala-baratos, ilusionistas do paleio ou vendedores de Bíblias. Porém, foi através da palavra que nos reunimos, foi na palavra que nos celebrámos e ser de palavras é também ser de palavra e nunca abandonar, rejeitar ou ferir só porque um dia o caminho se bifurcou. Na ponta oposta da forquilha está um só tronco. No rasto da mesma forquilha está o ouro escondido.

(Crónica publicada na revista Lux 1066 de 5 de outubro)

Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico
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