"Mário, o teu melhor capital é a tua mulher, é a Maria de Jesus”, disse várias vezes, ao longo da vida, Francisco Salgado Zenha ao amigo Mário Soares.
Maria Barroso não foi apenas a mulher do Presidente da República. Conquistou o seu próprio lugar na História, fruto de uma vida política e social ativa, repleta de lutas artísticas e pessoais. São noventa anos que fazem parte da História portuguesa em todas as suas dimensões.
A antiga primeira-dama estava feliz no dia 25 de junho e até passou a tarde na festa de final de ano da classe infantil do Colégio Moderno, com a filha, Isabel, atual diretora da instituição. Estava bem de saúde, mas, à noite, em casa, quando se levantava da cadeira da sala de jantar, caiu e bateu com a cabeça. Começou a sangrar, mas estava consciente. Por precaução, foi transportada de carro ao Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, pelo sobrinho, o médico Eduardo Barroso, e pela neta, Mafalda. Os primeiros exames a que foi submetida nada revelaram de grave, mas três horas depois, já na madrugada de sexta-feira, o pior aconteceu e Maria Barroso entrou num coma irreversível. Com novo exame, descobriu-se uma “hemorragia catastrófica”, e a família decidiu não submeter a matriarca a uma intervenção cirúrgica, dada a sua avançada idade e o seu debilitado estado de saúde.
De aparência frágil e estatura pequena, Maria Barroso gozou sempre do estatuto de eterna primeira-dama. Apesar de ter adotado o nome do marido quando se casou, nunca abdicou de usar o seu apelido de solteira. Descendente do oficial do exército Alfredo José Barroso e da professora primária Maria da Encarnação Simões, a antiga primeira-dama nasceu a 2 de maio de 1925 na Fuzeta, no Algarve, numa família de sete irmãos. Um ano depois do seu nascimento, a família muda-se para Setúbal, cidade para onde o pai da antiga primeira-dama foi destacado. Com dificuldades financeiras, a família beneficiou sempre da crucial ajuda da avó materna. Foi, aliás, com essa avó, profundamente católica, que Maria Barroso aprendeu a rezar durante as frequentes idas à igreja. A política também marcou desde sempre a sua vida. Ainda não tinha dois anos quando o pai foi preso por envolvimento no golpe de 7 de fevereiro de 1927. Seis anos depois, Alfredo José Barroso é novamente detido e deportado para Angra do
Heroísmo, nos Açores. Nesta altura, Maria Barroso estava longe de imaginar que voltaria a passar pela mesma provação quando se casasse com Mário Soares, o que só aconteceria daí a muitos anos.
Antes disso, é preciso recordar a jovem tímida que se apaixonou por poesia e teatro. Maria Barroso descobre a vontade de ser atriz e de representar. Aos 15 anos, consegue convencer o pai a deixá-la inscrever-se no curso de Arte Dramática do Conservatório Nacional com a condição de que continuaria a estudar. Assim fez, contra a vontade da mãe, que comungava do preconceito que existia contra os artistas na época. “A minha mãe chorou”, contou a antiga primeira dama no livro “Maria Barroso - Um Olhar Sobre a Vida”. Porém, a jovem Maria estava determinada a cumprir o seu sonho, nem que para isso tivesse de andar numa roda viva entre as aulas no liceu e as do Conservatório. Conseguiu, e estreou-se no teatro profissional em 21 de junho de 1944, com a peça “Sua Excelência, o Ladrão”. Tinha 19 anos. Em outubro do mesmo ano é contratada para o elenco da Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro e começa também a frequentar o curso de Histórico-Filosóficas da Faculdades de Letras. Foi lá que, no ano seguinte, conheceu Mário Soares. A sua grande ambição era ser atriz, mas o sonho durou apenas quatro anos.
Apesar de ser considerada uma das grandes revelações e promessas do teatro, os seus recitais de poesia revolucionária incomodaram a ditadura e Maria Barroso foi afastada do Teatro Nacional e impedida de prosseguir a carreira de atriz. “Foi um desgosto. Senti que era uma injustiça”, contou na mesma biografia. Nessa altura, já namorava há alguns anos com Mário Soares, com quem partilhava os ideais políticos de luta contra o regime. A 13 de fevereiro de 1949, Soares é preso pela quarta vez, dias antes das eleições em que Norton de Matos é candidato à Presidência da República. Nove dias depois, casam-se por procuração. Sem o noivo, Maria Barroso foi à conservatória do Registo Civil com os pais e três dos irmãos. Segue depois para a cadeia de Aljube, a tempo de visitar o já marido. Foi lá que trocaram as alianças. Seis meses depois, nasce o primeiro filho do casal, João; dois anos depois, é a vez de Isabel. “Sempre tivemos uma vida agitada, intensa, o que me ajudou muito. Viver em conjunto é desgastante para o casal quando os dias são sempre iguais, mas entre nós nunca houve tédio. E nós passámos por tantas dificuldades, que isso sempre foi renovando a relação”, disse a antiga primeira-dama no livro de Leonor Xavier.
A verdade é que o casamento esteve sempre sujeito a grandes provações. As várias detenções do futuro presidente, a deportação para São Tomé e o exílio em Paris obrigaram Maria Barroso a ter, muitas vezes, o papel de pai e mãe e a ser a força motora da família. Para além de ter de garantir a subsistência dos filhos, administrava e dirigia o Colégio Moderno, do seu sogro, com quem manteve sempre uma relação de grandecumplicidade. O ano de 1970 põe a sua capacidade de resistência à prova com a morte do pai, em janeiro, depois de uma queda na rua, na sequência de uma síncope cardíaca, da mãe, três meses depois, com um tumor maligno, e do sogro, em julho. Três golpes que deitaram Maria Barroso abaixo, mas dos quais se levantou, como sempre. Apesar das preocupações da gestão familiar do dia a dia, nunca abandonou a luta política, e foi uma das fundadoras do PS, juntamente com o marido. A revolução de 25 de abril de 1974 e o regresso a Portugal de Mário Soares impõem o fim definitivo das constantes separações do casal. Em 1989, um acidente de avião em Angola deixa o filho em coma, entre a vida e a morte. Nesta altura, a primeira-dama recupera a fé que havia perdido. Vira-se novamente para Deus e reza para que João Soares sobreviva. A espera demorou vinte dias, e Maria Barroso nunca mais abandonou a crença religiosa.
Foi como primeira-dama que conseguiu dar asas à sua veia humanista e solidária. Durante os dez anos em que Mário Soares assumiu a Presidência da República, desenvolveu projetos de combate à droga e apoio aos deficientes, empenhou-se em iniciativas culturais e teve sempre uma voz ativa sobre os problemas mais importantes da sociedade portuguesa. Deu primazia às questões da infância, da juventude, da educação, da família e das mulheres, preocupações que se estendiam aos emigrantes, aos excluídos, aos marginalizados, à prevenção da sida, aos doentes... Em 1987, funda o Movimento Emergência Infantil, que abriu vários centros de acolhimento a crianças em situações de risco. Em outubro de 1994, é criada a Fundação Pro Dignitate, a que preside, a pensar nos direitos humanos.
No ano em que abandona o Palácio de Belém, é eleita presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, mas impõe como condição não receber salário e não usar carro e motorista da instituição. Seis anos depois, deixa o cargo por não concordar com a interferência do Governo na eleição dos dirigentes. Um ano depois do nascimento do seu quinto neto, Lilah, descobre que tinha um cancro na mama. Foi operada com sucesso no Hospital da Cruz Vermelha, onde teve de retirar um peito. Saiu vencedora da luta e um mês depois, com 83 anos, estava de volta ao trabalho, porque continuava a querer mudar o mundo. Sem comer carne há 18 anos, foi sempre adepta de uma alimentação saudável e de uma noite bem dormida.
O gosto pela representação e pela declamação acompanhou-a toda a vida. Sabia de cor os poemas que marcaram a sua juventude. Em maio, quando fez 90 anos, garantiu ao jornal i que só pensava no passado “para ver o que não fiz e ainda posso fazer”: “Valeu a pena ter vivido. Apesar de todas as contrariedades, de todos os revezes, de todas as encruzilhadas. Passei tempos muito difíceis quase desde que nasci, mas acreditei sempre”, disse ao mesmo jornal. Uma entrevista que parecia anunciar a despedida. “Sinto que estou quase a partir, que se aproxima o momento”, confidenciou.
Maria Barroso, mulher do ex-Presidente da República Mário Soares, morreu hoje, dia 7 de julho, aos 90 anos, no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, onde estava internada, em estado grave, desde 26 de junho.